Entrevista de emprego
Era chegado o dia tão esperado por Ruth. Acordou cedo, tomou café como de costume (leite, achocolatado, pão, manteiga, pão e outro pão), tomou um banho caprichado e caprichou mais ainda no sorriso que estava brilhante, afinal havia gastado uma nota com o clareamento dental e dormir com aquela placa na boca tinha que valer à pena.
Colocou sua melhor roupa. Uma blusa vermelha cheia de babados na gola, manga comprida e um laço grande perto do pescoço.
A saia lápis era cáqui, a altura do joelho, o único incômodo por enquanto era a meia calça, que não encontrou do número 302 e acabou comprando o número 400, ficando amarelada demais, mas se conseguisse chegar lá sem que ela desfiasse já estava de bom tamanho. Calçou seu sapato scarpim preto que pretendia pagar com o salário do próximo emprego, afinal dividira em dez parcelas de R$ 56,00 no cartão de crédito.
Passou um pouco de “rouge” nas bochechas, um batom nem rosa, nem vermelho, nem brilhante, nem fosco e fez um coque baixo nos cabelos longos e lisos para tentar impressionar mais, demonstrando elegância.
Alinhou os óculos redondinhos, de muitos graus, rente aos olhos. Estavam irretocavelmente limpos, cruzou os dedos e disse olhando-se no espelho: “boa sorte!”
Por último borrifou um pouco de Alfazema sobre a blusa vermelha e lá foi ela empolgada para a entrevista.
Caminhou por uns três quarteirões carregando uma pasta roxa embaixo do braço, já sentia que não seria fácil manter-se elegante até o fim da entrevista, o sol pingava gotas de ódio sobre as cabeças naquela tarde, era um calor senegalês e ela já sentia escorrer um pouco de suor de suas axilas e também da dobrinha das nádegas, ensopando a meia calça amarelada, mas manteve-se confiante e indestrutível, precisava impressionar com uma boa imagem, pois tinha dívidas e carecia de um bom emprego.
Era sua chance mas, infelizmente, no seu íntimo cometeu um grande erro. Aquele que nunca devemos cometer. Ela fez a pergunta que não se faz em um dia como aquele: “O que pode dar errado?”
Foi aí que a coisa começou a desandar. Ruth já estava a boas léguas de casa quando avistou seu ônibus se aproximando na esquina, correu ensandecida para não perdê-lo, e não perdeu, mas não conseguiu evitar que alguns respingos de lama sujassem o laço de sua blusa. Otimista que era pensou: “Ah... não tem problema, são só umas gotinhas, ajeitando pra cá ou pra lá consigo disfarçar”.
Seguiu sorridente a nossa candidata a uma vaga. Subiu no ônibus e ficou observando o trânsito, as pessoas caminhando na rua e se sentindo vitoriosa, não avistava por ali ninguém tão bem vestida, tão preparada e tão decidida a vencer quanto ela, as palestras da hinode haviam servido para alguma coisa.
Seu pensamento vagava quando ouviu o barulhinho da campainha. Alguém apertara o botão avisando ao motorista para parar ali. Que ótimo! Ela também ia descer. Tudo estava dando certo. Ao descer do ônibus, porém, virou o pé e se esborrachou no chão! Um homem gentil e muito bonito a ajudou a levantar-se e ela logo achou que estava vivendo um filme de romance, sentiu um vento em seu rosto, um foco de luz sobre sua cabeça e viu o mundo em câmera lenta, enquanto pensava: “que homem lindo, que sorte a minha!”, mas logo se recompôs e agradeceu à ajuda do estranho. Seguiu para seu destino mas não sem conferir a tal da meia calça! “Puxa, é mesmo meu dia de sorte, ela não desfiou nadinha”.
Estava tão aquecida por dentro que não percebeu que seu pé inchara assustadoramente, mal cabia em seu scarpim que já entortava o bico. Seguiu sorridente e agradecida por estar dando tudo certo. Realinhou os cabelos que se soltaram com a queda, deu uma olhadinha no espelhinho da bolsa. Tudo bem! Vamos lá!
Mais adiante um garotinho soltava uma pipa em cima do passeio, “Como pode? A mãe deixou essa criatura sozinha aqui?”
E eis que um vento surgiu de repente, só para aprontar uma molecagem e derrubou a pipa do menino por cima do murinho baixo de uma casa. O menino começou a chorar porque não alcançava o muro e Ruth ficou com pena dele! “Maldito coração! Pra que eu tenho que me envolver? Assim vou acabar me atrasando, mas pobre do menino... Ah! Rapidinho eu pego essa pipa, não vai custar nada.”
Então Ruth debruçou o corpo sobre o murinho que era mais ou menos da altura do seu peito, ali já levou uma carimbada de tinta branca no babado da blusa e, sem que ela pudesse evitar, um cachorro que estava do lado de dentro da casa deu um pulo e arrancou seus óculos da cara destruindo-os num segundo!
“Meu Deus, que susto!!!” O cabelo já estava todo esguelhado, o suor já molhava toda sua roupa. A saia colou-se tanto ao seu corpo que já era possível se notar, a cada passo que ela dava, os furinhos das suas nádegas gelatinosas. Ruth pulou para trás e com um sorriso generoso disse ao menino: “peguei sua pipa!”
Estava segura demais para perder o controle da situação. Analisou-se e viu que sua imagem já se estragara um pouco, mas daria um jeito, pelo menos a meia calça continuava intacta.
Lá foi ela caminhando meio cegueta pela calçada, faltava pouco para chegar ao escritório onde seria entrevistada. Ela não se abatia por nada. Tinha uma dignidade aristocrática.
Um relâmpago e uma chuva grossa surpreenderam Ruth que correu em direção a uma marquise. “Ah! Vai passar rapidinho! Chuva de verão! Ainda bem que saí de casa um pouco mais cedo e o que é melhor, eu trouxe um guarda-chuva”.
Mentalmente vangloriava-se contra São Pedro: “por essa o senhor não esperava!”
Resolveu enfrentar a chuva porque o relógio já marcava dez pras dez, e sua entrevista começaria às dez em ponto. Lá foi ela, pegou o sinal fechado para os carros e atravessou meio manca na faixa de pedestre, começou a perceber o inchaço no pé que já doía, e como doía!
Ao fim da travessia recebeu um jato de lama nas costas, foi um carro bem apressado, de um motorista sem coração, que a alvejou. “Que droga!”- pensou. Mas sem perder o otimismo que lhe era peculiar, afastou o próprio pensamento: “Ainda bem que foi nas costas, o entrevistador vai me ver primeiro pela frente.”
Quando entrou no prédio do escritório onde aconteceria a entrevista deu de cara com uma mulher descabelada, com os cabelos molhados e arrepiados, com uma blusa de babados e laço vermelho no pescoço, mas que continha uma faixa branca de tinta sobre o peito, uma saia que era cáqui até a altura dos quadris, mas que das coxas pra baixo estava marrom, uma meia calça laranja e rasgada, um pé maior que o outro quase saltando para fora do scarpim preto do bico torto e cujas costas eram pura lama. Sem óculos, apertando os olhos para ver direito a candidata, ela pensou: “que sorte a minha, essa mulher não tem a menor chance com esse emprego, como é que vem assim para uma entrevista?”