O velho e o menino

Certo dia, numa praia destas sem nome, em um mês que talvez ninguém vá lembrar… Nem tão pouco o século, ou o milênio… Era!

Estava a caminhar pela areia um homem velho, um tanto enfermo. Um caminhar meio lento, cercado de profunda nostalgia, perdido em reflexões de despedidas e erros, em vitórias perturbadas por agonias e anseios…

Parecia ser o fim da tarde, pois a maré engolia um pedaço de areia a cada respirada profunda que o velho dava (tossia), como que chamando o velho para o seu meio, como fazem as sereias, que costumam convocar, de forma sedutora, os marujos mais carentes ou vadios.

O velho, porém, mantinha-se firme, de olhar fixo na areia, sem olhar para o oceano… Talvez, apenas, um leve espiar, daqueles de canto de olho, num sabe?

Não encarava a vastidão daquele céu – mar, no receio de que, quem sabe, sua alma fosse seduzida pela melodia e pela beleza das águas mais profundas.

E seguindo foi, até que se assustou ao perceber, mais à frente, a figura de um menino. Uma criança que pareceu ter surgido, sei lá de onde, e muito menos se sabe como, ou porquê. Surgiu assim, como aparição. Seria um fantasma? O velho perguntou ao seu Deus que tanto o protegia (e vigiava)… Não teve resposta! Nem do Deus que o ama e nem tão pouco do menino calado e risonho, que agora já estava tão perto, que dava até para se perceber uma imagem desenhada na areia e o menino, em silêncio, a apontar:

– O que seria isso?

O velho perguntou, esperando ouvir a voz do garoto, ou ao menos um sussurro que fosse, mesmo que perturbasse um pouco a calmaria angustiante da maresia monótona e sem cor da travessia…

O menino, persistindo no silêncio, apenas se abaixou, e entre os dedos com a pequenina mão, retirou um pouco de areia, para depois deixar os grãos se esvaírem por entre os dedos, como geralmente se esvaem os anos de vida de cada um de nós…

O menino então apontou para o chão, depois para o desenho e, por fim, para o horizonte além mar.

Finalmente se fez entender, e em troca, recebeu uma gargalhada do velho:

– Garoto, sua imaginação é incrível! Quer dizer que você acha que se navegar além deste mar bravo e frio, vai encontrar outra terra? Tolo e ingênuo, você é um menino tolo, pois direto nesta direção, você só encontrará mesmo são os monstros extremamente perversos e as profundezas miseráveis do inferno, que tolo nenhum do mundo, um dia, ousou querer conhecer…

O menino, ao invés de se assustar com as histórias mais que horripilantes do velho, apenas sorriu, mais uma vez, e continuou a fabricar arte na areia, desta vez desenhando uma paisagem, que seria algo belo e normal, se não fosse o fato dela possuir dois sóis.

O velho tornou a gargalhar, exaltando a criatividade do garoto, mas ao mesmo tempo em que o chamava de tolo e ingênuo. Decidiu então ensinar o menino, para que ele soubesse o que era certo, o que era verdade. E enquanto o velho falava, o menino, ouvindo, registrava, mas sempre trazendo uma surpresa…

Ele falou para o menino sobre a cruz, e tudo que ela representava. O menino então desenhou duas cruzes, uma gigante e cravejada de rubis, a outra, mais simples e de madeira. O velho achou estranho o menino ter desenhado as duas cruzes, mais deixou pra lá e passou a falar de Jesus. O menino, então, desenhou Jesus, de barba e manto, com a coroa de espinhos, e ao lado de Jesus, um homem qualquer… O velho estranhou ainda mais, mas naquela altura, resolveu não perder mais tempo com as invenções do menino e sim com a sua oratória, passando a falar cada vez mais rápido e difícil, como que demonstrando um conhecimento extraordinário, alguns diriam: monumental! Mas que para o menino, não passava apenas de palavras estupidamente cuspidas na areia (e um pouco até, em seus desprotegidos olhos).

Tomou o menino então, a desenhar, sem mais olhar para o velho. Um desenho mais demorado e caprichado, que apenas depois de todo o longo discurso, é que o velho veio perceber: que se tratava de sua imagem, correta, perfeita, até nas rugas e cicatrizes.

O velho, pela primeira vez, não gargalhou. Pelo contrário, engoliu seco, e depois de alguns segundos, conseguiu proferir poucas e tremidas palavras:

– Esse… Esse sou eu, menino. Nossa, é incrível!

Tão boquiaberto estava o velho, paralisado com a tamanha capacidade e talento de alguém tão jovem, que nem notou quando uma onda imensa se elevou bem na frente deles, e os engoliu.

No outro dia, bem cedo, ainda não havia sinal, nem ao menos uma leve pista, do velho falante e do menino silencioso. Mas os desenhos ali estavam: intactos. Bem, não tão intactos, mas visíveis o bastante para quem quisesse ver. E imaginar o que teria ocorrido.

(Esta foi uma pequena reflexão sobre a passagem da Idade Média para a Era Moderna)

Claucio Ciarlini (2013)

Claucio Ciarlini
Enviado por Claucio Ciarlini em 19/02/2022
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