A Ameaça
I
O céu enrubesceu- se todo, a cidade de São Paulo, no final da tarde de janeiro, não pareceu se importar naquele fato corriqueiro de meados de verão em mais um dia chuvoso. Os carros se engalfiavam entre si numa disputa perdida por espaço das áreas secas ou menos invadidas pela correnteza.
Os alagadiços das avenidas sim, representavam problemas.
As primeiras imagens foram feitas de uma tomada aérea pelos repórteres de um helicóptero da rede televisiva e deram conta da imensa nuvem cinza . Ela estava lá imperiosa e por cálculos baixos media alguns quilômetros de diâmetro. No entanto, a chuva torrencial necessitava de mais atenção.
A rubrosidade do céu tornou-se um véu negro e denso, deixando o entardecer escurecido. A falta de energia na maioria dos bairros deixava a situação tensa e fora de controle, mas o paulistano parecia não mais se importar com essa rotina quase diária dos verões e seguia sua dificuldade cada um a seu modo.
Enfim, a noite apareceu mais cedo e os que se salvaram, foram dormir ou tratar de seus afazeres. No dia seguinte, teriam uma cidade normal.
II
Em janeiro de 2022 a tensão entre Rússia e Ucrânia estava prestes a chegar nas vias de fato. Depois de uma decadência de cerca de 30 anos, o país, que tem seu território em partes da Europa e da Ásia, resolveu dar a volta por cima e mostrar o quanto havia crescido após o colapso da União Soviética.
Essa guerra não seria contra a Ucrânia, mas contra outra superpotência, os Estados Unidos e talvez o restante do planeta. E a tensão não seria tão solúvel desde a guerra fria.
Com demonstração de autoconfiança e disposta a mostrar ao mundo que não havia recuado diante das humilhações sofridas num período nebuloso, o país precisava mostrar que dera a volta por cima e estava atrás de recuperar território e fortalecer suas fronteiras.
Era madrugada no Kremlin, sede do governo russo, quando a ordem foi emitida pelo presidente Putin. Os primeiros ataques para intimidação e demonstração de forças deveriam acontecer logo pelo alvorecer.
Cerca de mais de 100 mil soldados russos estavam posicionados perto das fronteiras com a Ucrânia.
III
Era por volta das 16 horas, a baía da Ilha Grande, no sul do estado do Rio de Janeiro, mantinha a serenidade do fim de tarde e do frescor de verão.
Pedro lançou uma última vez a rede perto de umas costeiras que margeavam um canal de água que desaguava da pequena ilha até a abertura do mar.
Hoje o dia não estava pra peixe, lamentou, entanto, uma última tentativa não o desgastaria mais. Limpou o suor da testa com o antebraço e instintivamente olhou para o céu.
Uma densa nuvem escura se movia rapidamente vindo do sudoeste como a tomar o espaço celeste todo para si.
-Vem chuva, e das grossas - pensou, à medida que rapidamente recolhia as malhas da rede com extrema ligeireza. Porém, nenhuma brisa favorecia aquele deslocamento rápido daquela porção de nuvem e o tamanho dela parecia ser bastante significante.
Pedro retardou mais uma vez o olhar e franziu a testa na direção da imensa massa escura de nuvem. Era tão gigante a ponto de não identificar o seu fim.
Ele fez meia volta na canoa e em remadas vigorosas conduziu a embarcação pelo canal adentro, tomando as areias da praia num lance rápido.
Atracou. Amarrou a canoa e entrou para casa.
IV
José Firmino levantou às quatro da manhã, o calor insuportável da noite não o deixou pregar os olhos.
Abriu a janela e recebeu uma lufada de ar fresco no rosto. O galo já há muito cantara e os pássaros já faziam sua algazarras do amanhecer.
Este ano o inverno será bom. Duas semanas seguidas de chuvas e o milho e feijão já começaram a brotar no roçado. A caatinga estava um tapete verde e até algumas flores tinham surgido no sertão. O açude estava cheio e o gado voltara a encorpar, estava viçoso, com a pele alumiada, sedosa.
Calçou o par de botinas de couro, já envelhecida e banhou o rosto com a água que mantinha numa tigela ao lado da cama. A casinha simples não tinha muitos cômodos, então para chegar à cozinha, atravessou apenas o umbral da porta semi serrado apenas por uma cortina de tecido encardido. Tomou um desjejum rápido e partiu para o roçado municiado de uma gamela de água, foice, facão e enxada.
Às sete da manhã e o sertão ainda estava escuro. José Firmino olhou pela enésima vez para o céu na busca de uma resposta,mas o silêncio da imensidão insólita não lhe oferecia nada, apenas um medo lhe assomava a alma e enrijecia a pele tornando seu corpo tenso. Por volta das nove da manhã, recolheu seus pertences e voltou para casa.
V
A América latina amanheceu sob uma nuvem espessa escuro acinzentada e os noticiários davam conta da expansão da massa cinzenta em velocidade incrível pelas outras Américas. Ao meio dia havia ultrapassado o golfo do México e seguia na direção dos Estados Unidos. Às treze horas já tinha alcançado o Canadá. Adentrou o Atlântico norte chegando à Europa e se expandiu para a Ásia o restante dos continentes, no final do dia, já tinha coberto todo o globo terrestre.
Uma escuridão sobrenatural invadira o mundo.
Os governos trocavam informações entre si para se inteirar da situação em cada local.
Todos os países emitiam um relatório de uma em uma hora. No entanto, fora algumas anomalias, o local em que havia mais instabilidade e movimentação orgânica era na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia, onde estava formado um conflito entre esses dois países. A massa cinzenta nessa localidade do planeta emitia alguns ruídos bem discretos e parecia ter um núcleo na forma de redemoinho onde podia se abrir e fechar numa espécie de portal. Então o Pentágono erigiu suas forças para lá. Os exércitos todos focaram suas armas para o céu à espera de um ataque extraterrestre.
VI
O Japão, os Estados Unidos e a China mandaram suas forças bélicas para se juntarem à Ucrânia e à Rússia.
Foram três dias de tensa escuridão no mundo. A população desesperada implorava para que aquilo fosse apenas um fenômeno da natureza, mas os radares, telescópios e computadores não conseguiam identificar a origem, nem a forma orgânica daquela gigantesca nuvem.
Então, no final do terceiro dia, uma movimentação mais frenética da massa cinzenta começou a chamar a atenção dos soldados, ela parecia querer se abrir em espiral e à medida que se movimentava para isso, emitia um zumbido fino e comprido, como se fosse um longo assovio.
Isso demorou um quarto de horas, parecendo contrações, indo e voltando cada vez mais forte e intensa.
Um medo tomou os soldados no campo de batalha.
E súbito, a nuvem então começou a se abrir.
Alguém gritou em inglês: -Protejam-se, vão atacar!
Os mísseis instintivamente foram acionados e uma rajada incrível de bombas atingiu a nuvem que se abria lentamente formando um clarão no meio.
Ela rapidamente se retraiu e fechou-se, como se estivesse viva. Um silêncio aterrador pairou entre todos os soldados que agora lutavam juntos. Nenhum murmúrio ouvia- se a cada lado dos exércitos.
Então, num estalo ensurdecedor a nuvem expandiu-se e retraiu com a mesma velocidade e centenas de bilhares de borboletas de todas as cores imagináveis foram despencando ao chão mortas, fazendo da campo de batalha um tapete multicolorido e murcho ao mesmo tempo.
Em todos os cantos, em todas as casas e países e continentes, a densa nuvem desformou-se, sumiu ligeira e a claridade do planeta voltou ao normal.
***
O Kremlin ordenou que agora os ataques à Ucrânia, já não deveriam ser uma simples demonstração de força.