A MAGIA DO CAOS

Aquela noite, depois de um longo período de silencio, as luzes brancas surgiram no meio da ravina, vindas do nada. E assim como vieram, se esvaneceram no ar, deixando para trás apenas três atônitas figuras.

Com um gasto sobretudo cinza e um chapéu fedora, um deles, de fisionomia dura e com um olhar perscrutador, após examinar perplexamente seus pares, exclama:

- Mas que porra é essa?

Um dos outros, um homem de porte atlético e cabelo loiro, trajando uma indumentária tão rente a seu corpo que delineava seus potentes músculos com clareza, colorida de vermelho e branco e com uma insígnia com um PJ estilizado à altura do peito, o repreende:

- Maneire seu linguajar, homem!

A terceira deles, tão admirada com a situação quanto ambos, trajava um surrado macacão de brim. Mas o mais curioso em suas vestimentas era a quantidade de acessórios peculiares que carregava: Um par de óculos de proteção posto acima da testa, segurando os cabelos ruivos, uma bolsa de couro de onde saltava ferramentas das mais variadas, uma estranha caixa com engrenagens bronzeadas pendurada no pescoço e mais uma sorte de utensílios de utilidade desconhecida espalhados por bolsos por toda a roupa recoberta de esfumaçadas manchas de carvão.

- Quem... Quem são vocês? – Ela questiona

- Tirou as palavras da minha boca, madame. Estou aqui pensando nisso, e também onde estamos – Disse o homem de sobretudo, se levantando e batendo as mãos pela roupa, tentando retirar a terra que a impregnou quando prostrado no chão.

- Sim. Eu estava agora mesmo em Gothopólis, tentando impedir o Bufão de seqüestrar a filha do prefeito... Que lugar é esse? – Disse o homem de colante colorido, observando a seu redor.

- Também não sei. Estava na minha oficina e num momento... PUFT! Vim parar nesse lugar; - A mulher responde, tentando absorver a situação.

- Olha, não importa o que vocês estavam fazendo. Eu tenho um caso para resolver. Aliás, que diabos nos trouxeram para cá? E como? A última vez que vi uma colina dessas foi quando minha amada vózinha chutou o balde e o velório foi em sua fazenda. Aquela megera não deixou nem um pedaço de terra para mim, mas que o criador a tenha... O uísque! É isso, Aquele uísque barato deve ter feito isso. Vocês não estão aqui comigo. É uma alucinação... – O homem de sobretudo confabula, ao mesmo tempo em que franze a testa, incomodado pela dor de cabeça.

- Posso garantir que sou bem real, meu bom homem. – O homem de colante prossegue.

- Eu também. Aliás, meu nome é Elizabeta. Eu sou engenheira mecânica da Ordem das Caldeiras.

- Nunca ouvi falar disso. Eu sou Gumshot Joe, detetive particular, a seu dispor. – O homem de sobretudo fala, retirando o chapéu e mostrando sua incipiente calvície.

- Eu acredito que vocês já devem me conhecer... – O loiro diz

- Não... – Elizabeta diz.

- Nadinha aqui também... – Joe também nega.

- Como não? Poderoso Jack? Meus feitos saem nos jornais todos os dias...

- Então estou lendo os jornais errados – Joe responde.

- Também.

- Ora. Isso é impossível...

- Você disse que estava em Gothópolis ou algo assim, não? Não conheço esse lugar... Pelo nome deve ser grego. Nunca estive na Grécia.

- Não. É uma das maiores cidades dos Estados Unidos.

- Vocês não são ingleses? O sotaque e as roupas são muito estranhos mesmo. É claro que não são da terra da Rainha Vitória.

Ambos os homens se entreolham

- Rainha Vitória?

A situação parecia ficar cada vez mais confusa. Um silêncio se instalou entre eles, sendo quebrado apenas instantes depois, por um rosnado animalesco.

Das sombras de um conjunto de árvores, dois brilhantes olhos vermelhos saltam para o meio da clareira. Uma criatura de grandes músculos negros, face lupina e olhar selvagem os encara. Os três se assombram com a figura e, instintivamente começam a reagir. O detetive abre sua capa e saca um revólver preto, a mulher puxa de uma de suas botas uma longa faca e o herói se põe em postura para tentar se defender com as mãos limpas.

Um clarão avermelhado ilumina por um instante quando o detetive dispara a arma. Duas e três vezes. A criatura é atingida, e com um rugir misto de dor e fúria, salta para cima do detetive. O detetive arregala os olhos em desespero, mas aquele vulto medonho repentinamente é projetado para longe, quando Poderoso Jack o atinge com um murro de força sobre-humana, A criatura rola para o chão algumas vezes, para perto de Elizabeta, que, mesmo assustada, o golpeia com sua faca algumas vezes. A criatura não se levanta depois disso.

Eles permanecem mais alguns momentos em silêncio, sobressaltados, olhando a criatura no chão. Joe e aproxima dela, se abaixando para examiná-la.

- Que bicho desgraçado é esse?

- Não sei. Nunca vi algo assim. – Elizabeta, ofegante, o responde.

Jack se aproxima

- Não vi nada igual, também. Parece um lobisomem ou algo assim.

- E, que soco foi aquele, meu chapa? – Joe pergunta a Jack

- Foi só um soco normal. Eu não estava preparado. Por quê?

- Um soco daquele no boxe e você leva o cinturão de ouro pela eternidade

- Foi um soco comum. Acho que apenas a metade da minha força;

Joe lança um olhar impressionado para Jack.

- É por isso que sou um super-herói. Minha força e resistência são bem maiores que de uma pessoa normal.

- Super-herói ? Como dos gibis?

- Não. Como qualquer super-herói do mundo.

- Não do meu mundo.

Enquanto estavam discutindo, Elizabeta, com um dispositivo de várias lentes que retirou da bolsa, examinava a criatura.

- Essa criatura. Ela não é desse mundo...

- Ou talvez seja. E nós que não – Disse Joe, olhando para o céu, apontando para que os outros também o fizessem.

No céu, duas luas, uma pequena e outra maior, brilhavam intensamente.

Os três, surpresos, tornam a olhar para seu redor. Do canto de onde a criatura surgiu, reparam num caminho batido na terra. Uma estrada estreita. Joe vai até ela, fazendo um aceno que o siga. Após atravessarem algumas árvores, chegam ao declive da colina, de onde podem ver um pequeno vilarejo campesino, e uma estrutura de pedra ao final dele.

Eles seguem até o vilarejo um tanto precavidos. Das casas rústicas não vinha nenhuma luz. Apenas as estranhas luas iluminavam as construções. Um silêncio mortificado dominava o ar. Joe bate em algumas portas, enquanto os outros vigiavam. Elizabeta retira da bolsa um estranho lampião com grossas lentes, acende nele um pedaço de carvão com uma pederneira, e uma forte luz avermelhada se manifesta.

Sem resposta quando tenta bater a porta, Joe simplesmente abre uma delas e entra na casa escura, sendo seguido pelos dois outros. Na rústica choupana, havia evidentes sinais de luta. Cadeiras, mesa e toda sorte de mobília estava destruída. Joe retira e recarrega seu revólver, e Elizabeta volta a desembainhar sua faca, ambos apreensivos. Um soluçar e gemido, então, são ouvidos em um dos cantos mal iluminados da residência.

- Hey. Acalme-se. Estamos aqui para ajudar. – Joe se aproxima da mulher envolta em sombras.

Logo atrás dele, Elizabeta dirige a luz de sua lamparina. Joe, antes preocupado, solta um soluço de espanto. A figura no chão era esquálida, em andrajos. Sua face estava escondida em suas mãos, e seus poucos cabelos brancos pareciam se soltar do couro cabeludo, cheio de feridas pustulentas.

- Não se preocupe... – Joe volta a tentar confortá-la.

Mas, com um urro visceral, a mulher revela sua face descarnada, como um cadáver decomposto. Joe se desespera àquela visão, e atira, mas a desmorta parece nem sentir e salta para cima do detetive. Elizabeta tenta atacá-la com a faca, enquanto ela estava agarrada a garganta de Joe. Também sem sucesso. Jack pula para frente, segurando a mão dela, que demonstra estranhamente uma força bem maior que a aparente. Em uns instantes de luta, ele finalmente consegue libertar Joe.

- Corra! – Grita para Joe e Elizabeta, enquanto domina a criatura.

Joe e Elizabeta correm para a casa logo à frente, enquanto Jack golpeia com força a criatura, que parece não sentir seus golpes e retalia com suas próprias garras. Jack, mesmo com sua resiliência, é ferido várias vezes. Num esforço desesperado, executa um gancho de baixo para cima, com toda extensão de sua força. A cabeça da zumbi é então separada de seu corpo, com o som de tendões e pele se rasgando.

Jack se recompõe e segue até a casa onde Elizabeta e Joe estavam. Dentro dela, vê os dois diante de uma família. Dessa vez, aparentemente, pessoas normais.

- O que fazem aqui? Quem são vocês? – A mulher mais velha pergunta, assustada.

- A primeira pergunta, também não sabemos. Quanto à segunda, acho que você não entenderia. – Joe tenta responde-la.

- É perigoso demais, aqui. – A mulher continua.

- Percebemos.

- Desde que o Mago do Caos veio para a masmorra. Tudo virou um terror.

- Mago do quê? – Jack pergunta.

- O Mago do Caos! Vocês não sabem nada sobre os Magos? Esses são os mais vis de todos. A magia deles é maligna e imprevisível. Desde que ele se instalou na velha masmorra essas criaturas surgiram atacando todos na vila. Muitos morreram. Muitos se foram. E é nossa vez de ir, assim que o dia raiar. – A mulher explana.

Os três se olham, curiosos.

- Mas, o que esse mago deseja? Por que ele criou essas criaturas? – Elizabeta continua perguntando à mulher.

- Quem saberia? Magos do Caos não seguem ordem. Ele deve ter feito isso apenas para nos ver sendo mortos e regozijar com isso. – A mulher responde, enquanto abraça a filha mais nova, desesperançada.

Antes que eles pudessem continuar os questionamentos, a parede de madeira atrás da mulher e de seus dois filhos se rompe num estrondo. Três vultos envoltos pelo luar se põem adentro da casa, imediatamente agarrando os residentes com violência. A mulher grita desesperadamente, e os três heróis, chocados, ficam sem reação por um momento, até Joe se virar em direção a porta. Jack ensaia um ataque, mas Joe agarra os braços dele e de Elizabeta.

-Você não pode com eles!

Os heróis correm pela porta e pela rua de terra da vila, em direção ao fim dela, enquanto os gritos da mulher vão sumindo na casa já distante.

Ao final da vila, eles estão de frente à construção de pedra. A masmorra.

- O mago deve estar aí dentro – Pondera Elizabeta.

- E se foi ele quem nos trouxe aqui? – Jack se pergunta, ainda remoendo a cena das criaturas atacando a família.

- Só pode ser isso. Fomos trazidos aqui por algum vudu desse feiticeiro – Joe conclui.

- Então. O que vamos fazer? Ele deve ser realmente poderoso para conseguir isso.

- Não sei. Mas acho que temos que confrontá-lo, Acho que é o único jeito de voltarmos para nossos mundos.

- Ok. Eu vou derrubar esse portão de ferro. Vamos ver o que tem dentro. – Diz Jack, enquanto se aproxima do pesado portão da masmorra.

- E que tal apertarmos a campainha, já que é para nos anunciar assim? – Joe ironiza. – Elizabeta, você tem alguma coisa que sirva para abrir isso nessa sua bolsa?

- Sim. Acho que tenho. – Elizabeta responde, enquanto vasculha o interior da bolsa;

Em um instante, Elizabeta está no portão de ferro, tentando desmontar a fechadura com uma espécie de chave de fenda com manivela. Com destreza, ela faz isso em um minuto.

- Pronto.

Eles entram pelo portão, passando por um caminho de grandes blocos de pedra, cobertos de limo denunciando seu abandono. A luz da lanterna de Elizabeta os guia no breu enquanto o caminho se estende por algumas dezenas de metros.

Após isso, o caminho se abre num grande pátio a céu aberto. Os heróis correm para trás dos escombros de uma coluna, enquanto observam a movimentação em seu centro. Quatro criaturas moribundas estavam vagando sem rumo, e de um estranho altar, gigantescos tentáculos se aninhavam enrolados de dentro de um disco brilhando no ar, não se podendo ver o resto do monstro.

No meio das criaturas, um corpo inerte no chão, trajando um manto avermelhado requintado.

- Aquele... Aquele deve ser o mago! – Elizabeta aponta.

- Ele está... Morto? – Joe se pergunta.

- Só tem um jeito de saber. – Jack se levanta e salta pelos escombros, indo em direção ao centro.

Sem tempo para protestar, Joe saca sua arma e Elizabeta ajeita algumas lentes de seu lampião, criando um facho forte de luz avermelhada. Jack chuta fortemente a criatura a sua frente, arremessando ela muitos metros, e agarra o corpo do mago. Joe atira várias vezes contra uma das criaturas próximas de Jack que tentava agarrá-lo, e Elizabeta vira o facho de luz contra os olhos leitosos da outra, que reage cobrindo o rosto.

Nisso, os tentáculos começam a se mover bruscamente. Um deles tenta golpear Jack, que faz uma finta e se mantém correndo até os outros. Os zumbis começam a se mover em direção ao grupo.

- Ele não parece morto. Está respirando. – Diz Jack, colocando o mago no chão.

- Hey, hey...acorde. – Elizabeta o sacode, sem efeito.

- Eu tenho algo forte aqui para desperta-lo. – Diz Joe, se abaixando depois de disparar nos zumbis que se aproximavam

De dentro do casaco, Joe retira um cantil de metal. O abre e cheira, torcendo o nariz após. Ele leva o líquido à boca do mago, que de imediato engasga e começa a tossir, despertando por completo.

- O que é isso? – O mago pergunta, ainda entorpecido.

- Receita de família. – Joe responde.

O mago os examina, ainda exasperado, e questiona.

- Vocês são os heróis?

- Que heróis?

- Os heróis que conjurei. Eu nem acredito que estão aqui! Eu preciso de ajuda!

Os três se olham em dúvida. O mago retira um livro ornamentado e começa a vasculhar suas páginas.

- Eu estava querendo tornar essas terras mais férteis...Mas alguma coisa deu errado.De repente aquele portal se abriu, e esses monstros começaram a surgir. E algo pior ainda está por vir. Por isso conjurei os “guerreiros mais poderosos de todo o mundo”.

- É... Parece que deu errado de novo.

Num golpe, um dos tentáculos rompe a barreira que os protegia. Joe volta a disparar contra os zumbis, que seguiam inexoravelmente suas direções. Jack tenta agarrar o tentáculo, estrangulando-o, mas a força dele é parelha. O mago, assustado, vira uma das páginas do grimório, e grita na direção dos monstros.

- PARARDIS LOBA DE GOFO!

Um jato fino de água sai de sua mão, atingindo um dos zumbis, sem causar qualquer estrago.

Enquanto Jack golpeava o tentáculo e Elizabeta tentava cortá-lo com sua faca, Joe percebe a atuação do mago e para de disparar, se dirigindo a ele.

- Hey. Deixa-meeu ver isso aqui... – Joe pega o grimorio e o examina. – Tome,tente outra vez.

- DISRARPA DE BOLA GOFO

Espinhos de pedra, de repente, saltam do chão e atravessam um dos zumbis, que solta um esganiçado rugido, e para de se mover.

Jack e Elizabeta conseguem ferir bastante o tentáculo, o que pareceu enfurecer ainda mais a criatura no portal, que agora começavam a agitar os outros com mais violência enquanto forçava sua passagem.

- Eu sei o que você tem, meu amigo. Você tem dislexia. – Joe diz para o mago.

- Dis...o quê? – O mago fica confuso

- Digamos que você tem uma maldição da leitura. Você não consegue ler o grimório.

O mago pondera um instante.

- Então. O que vamos fazer? Só eu posso lançar essas magias...

Um dos tentáculos avança mortalmente sobre os dois, mas com um salto, Jack se interpõe, sendo golpeado ferozmente nas costas, mas agarrando com toda força o apêndice maligno.

- Vai logo! Faça sua magia!

Elizabeta se aproxima e ataca o tentáculo com sua faca afiada, ao mesmo tempo em que tenta afastar os outros zumbis com a luz amplificada da lanterna.

Joe começa a procurar nas páginas do grimório por alguma coisa que lhes servisse. Pára numa das páginas.

- Escuta, meu chapa. Tu vai repetir o que eu disser, ok? Eu vou ler essa mandinga e você solta ela para acabar com isso.

- Sim. – O mago, angustiado, responde.

Joe diz, pausadamente, as palavras que consegue ler daquele volume, e o mago as repete, em alta voz.

- DEUSES DE TODOS OS CÉUS, TERRAS E MARES, FAÇAM MINHA VONTADE E RETORNEM ESSES SERES PARA SEUS LARES

E no instante seguinte, após um clarão branco, Joe está de volta a sua velha cadeira, de frente para sua ainda mais velha escrivaninha. Atordoado, ele sacode a cabeça, tentando amenizar a dor que sentia. Ele se levanta, vai até a porta de vidro com o decalque DETETIVE PARTICULAR, pega as cartas por debaixo da porta enquanto processava o que havia acontecido. Se houvesse realmente acontecido.

- Aquele uísque... Realmente me fez mal. – Remata, depois de refletir como podia.

Ele joga displicentemente as cartas sobre a mesa e se senta novamente, jogando os pés em cima da mesa, folgadamente. Abre o casaco e retira seu cantil, o abre e vira direto na boca, mas estava quase vazio.

- Hmpf... Receita de família... – Pensa, com um sorriso de canto de boca, relembrado aquele sonho estranho.

FIM

David Leite
Enviado por David Leite em 16/02/2022
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