"A Mamãe se Foi"

A vida é um negócio que não dá para explicar com coerência. As coisas acontecem e nos engolem como se fôssemos nada, como se não passássemos de criaturinhas minúsculas, vulneráveis às mais inesperadas tempestades. Mas talvez seja isso mesmo. Talvez sejamos apenas poeiras lançadas aos cosmos.

Ou talvez sejamos a estrela mais brilhante do universo de alguém.

Só que é uma questão de perspectiva. E perspectivas pressupõem que estamos observando a paisagem de um determinado ângulo, a partir de uma dada posição. E como chegamos até aquele lugar é algo que somente nós podemos explicar. Foi através das nossas escolhas, foi através das nossas descobertas, foi através das pessoas que conhecemos e que nos afetaram de algum modo. E afetar não é necessariamente ruim. Afetar é causar afetos. Que afetos as pessoas causam em nós? E a quais lugares esses afetos nos levam?

A verdade é que até mudarmos de posicionamento na vida para entendermos o que é realmente valioso ou não, demoramos. Às vezes é necessário que um caos aconteça para que, enfim, percebamos o quanto a nossa calmaria era tão valiosa e desmerecida. Às vezes estamos preocupados em sermos tão extraordinários para o mundo inteiro. Só que a gente esquece que talvez já sejamos importantes dentro do universo de uma só pessoa. A que de fato importa. A que o levaria dentro de si quando a sua presença física já não fosse uma possibilidade.

Talvez uma pandemia que ceifa vidas deva acontecer para que possamos enxergar o quanto somos tolos e medíocres por perdermos tempo com aquilo que o tempo corrói.

Eu amava minha mulher. E só de falar assim você talvez já consiga entender o que aconteceu.

— A vida ser incerta não quer dizer que seja perigosa, ameaçadora nem repugnante. Quer dizer apenas que de repente, o que parecia tão sólido e firme, revela-se tão maleável quanto o algodão. E isso não importa. Importa o que fazemos dessas incertezas: servirão de aprendizado, de crescimento, ou servirão para que nos escondamos atrás delas evitando a vida? — minha carreira como um filósofo palestrante estava no seu início, mas a repercussão de algumas das minhas aulas e a explosão do número de leitores para os meus livros, permitia que minhas primeiras palestras fossem sempre bem recebidas, acolhendo um número impensável de ouvintes atentos e interessados. Foi assim que finalizei minha terceira apresentação, cujo tema era sobre o fato de não termos controle sobre nada. O que é assustadoramente verdadeiro. E ficou ainda mais claro quando o mundo todo se viu atacado por algo invisível. Mas para mim foi muito claro antes de qualquer vírus surgir. Eu prometia a mim mesmo que, sendo filósofo, compreendendo as nuances da alma humana, eu jamais me apaixonaria por alguma pessoa. Mas ela estava lá. Ouviu as minhas palavras. Esteve presente dentre a multidão que aplaudia o meu discurso final. E nunca mais foi embora.

— O problema não é que vivamos crises — a mulher de cabelos cacheados com perfume adocicado estendeu o livro na minha direção —. O problema é que deixamos de acreditar que elas podem ser superadas — aquela era uma das minhas citações—. Foi uma ótima palestra — sorriu com simpatia.

Peguei o livro cuja capa trazia o meu nome, algo de orgulho para qualquer ser humano que se arrisque a colocar em palavras o fruto de seus pensamentos. Mas não o abri no automático como sempre fazia para deixar apenas uma frase genérica e a minha assinatura. Aquela mulher me enfeitiçou.

— Em homenagem a quem?

— À Laurel Xavier.

— Seria você? — lembro-me de, propositalmente, lançar à minha ouvinte o meu mais atencioso e interessado olhar.

— A seu dispor — aquele sorriso parecia ser eterno.

“Lisonjeado pela graça de ter uma leitora tão cativante. Para Laurel Xavier”.

Devolvi o livro.

Ela sorriu.

Mas antes que partisse toquei em sua mão. Levantei-me da cadeira em que estava sentado para autografar os livros dos ali presentes. Mantive-me conectado ao seu olhar. Perdendo o controle que achava possuir. Esquecendo-me de que tinha uma carreira a construir e ignorando a promessa que havia feito a mim mesmo de que nunca me distrairia com aquilo que os homens ingênuos chamam de amor, muitas vezes confundindo com o marasmo e a incerteza da paixão.

— De 0 a 10, qual nota daria para a apresentação? — perguntei.

— Deixe-me pensar... — elegante, colocou a mão no queixo com aquela fisionomia de quem se esforça por encontrar argumentos —. Tudo bem, eu me rendo... Você merece um 10 — falou divertida —. Mas que isso fique entre nós — aproximou-se de mim como alguém que está prestes a revelar um poderoso segredo —, digo aos meus alunos que nunca dou 10 a ninguém.

— E o que me fez merecer a exceção?

Ela sorriu outra vez. Olhou para trás. Uma fila se formava às suas costas, todos ansiosos para terem alguns segundos do meu tempo.

— Talvez em outro momento e em outro lugar — e assim partiu.

O que ninguém percebeu era que junto ao livro ela me entregou um cartão com números que obedeciam aos padrões de telefonia. Mas o que me conquistou foram os dizeres. “A filosofia é mais do que uma forma para pensar. A filosofia é uma forma de se viver. E tal qual a vida, a filosofia nos surpreende das maneiras mais impensáveis. Estamos dispostos a surpreender a nós mesmos?”.

Foi assim que aprendi que não temos controle sobre nada por mais que tentemos. Eu não ia me apaixonar. Não deveria ter me apaixonado. Mas ela apareceu. Com os cabelos dançantes, o perfume marcante e o sorriso encantador. Apareceu prometendo ficar para sempre. E ficou. Ficou no tempo que o seu para sempre durou.

Eu me dispus a me surpreender. Conheci a professora de psicologia que era doutora em filosofia. Mas nossas conversas e flertes não eram aquelas incógnitas indecifráveis que apenas dois intelectuais conseguem compreender quase como um código secreto capaz de ativar a bomba que destruirá o mundo. A gente conversava sobre o sentido da vida, a existência humana, as causas das angústias dos homens. Mas também falávamos sobre nós. Quem éramos um para o outro. O que esperávamos do futuro. Nossos encontros íntimos sempre começavam com boas doses de vinho e muita paixão que nos desgovernava. Mas terminavam com ela deitada sobre o meu peito ouvindo algumas páginas de livros escritos há muito por pensadores que deixaram o seu legado. Então, adormecia. E eu sorria. O filósofo concentrado em seus estudos e carreira enfim encontrava-se preso a alguém, à paixão de alguém, ao amor de alguém.

E confessava o quanto esteve enganado em relação às coisas do coração.

A gente se casou. Como não poderia ser diferente fizemos discursos um ao outro. Escrevemos páginas. E leríamos todas elas diante de nossos convidados. Mas na hora deixamos de lado os manuscritos do que poderiam se tornar um grande livro. E falamos de acordo com o que brotava de nossos corações naquele momento de tantas e desconhecidas emoções. Nossas vidas se uniam naquele momento. Nossas existências se confundiam naquela hora. Se existe algo de sagrado no universo é o Amor. Sem importar como ele se apresente. Sem importar a qual formato ele se adeque. O amor entre pessoas é algo que nunca saberemos explicar com exatidão. Porque ele muda pensamentos, ele é capaz de alterar sentimentos, ele pode, com sua força e seu poder, salvar a vida de alguém. Talvez seja a única coisa com a qual não devamos nos preocupar em definir, mas apenas em viver.

E nosso amor rendeu fruto.

Dois anos depois de termos nos casado as coisas se tornaram difíceis. Mas eu não havia me apercebido disso. Esse é um dos maiores erros que cometemos em nossa existência. A gente se preocupa com coisas supérfluas e não conseguimos contemplar o perigo anunciado que corremos. Perdemos tempo com aquilo que não levaremos e negligenciamos as raras e únicas coisas que nos eternizariam. Não naquele sentido prepotente de jamais ser esquecido e ter seu nome proclamado através dos séculos. Mas enquanto a eternidade de alguém que o amou durar. Porque quando a finitude dele também chegar, aí não haverá mais razão para que você exista.

Estava ocupado demais querendo deixar minha marca e influenciar as novas gerações de pensadores, que não havia notado a insatisfação da minha esposa, a mulher que prometi amar para além da existência. Seria eu um hipócrita no sentido mais literal que existe? Primeiro me apaixonei, contradizendo o que dizia acreditar. E agora agia equivocadamente diante daquilo pelo que assegurei lutar. O que eu queria na vida?

— Inacreditável — durante o café da manhã, mal conversando com a minha esposa, dando mais importância a um aparelho eletrônico que com o tempo perde sua utilidade, exclamei irritado —. Todas as palestras estão canceladas. Os encontros com leitores também... Maldito vírus!

— Vi mais cedo na TV que a recomendação é para que as pessoas fiquem em casa — pela primeira vez, naquela manhã, ouvi a voz de Laurel.

— Ficar em casa —falei em tom de zombaria —. E nossos planos?

Eu estava cego demais para a complexidade do problema e a seriedade da vida.

E ela suspirou cansada.

— Alex — disse com firmeza —. O que são os planos se na vida perdermos o que mais importa?

— Não sei se entendi.

— Quem é você, Alex? Quem é aquele homem que ensina aos outros para que se atenham às coisas imateriais da vida? Quem é esse sujeito estranho que diante de uma plateia lotada fala sobre a importância de cuidar de alguém, mas que há dias não me toca? Deveria estar agradecendo por esse vírus maldito encerrar suas obrigações. Eu pelo menos estava. Pensei que finalmente teria a chance de reconhecer o meu marido, mas a sua insatisfação me faz pensar que para além dessas paredes há algo muito mais importante e proveitoso do que a vida que nós escolhemos construir e viver juntos.

— Laurel... — tentei me expressar, mas apenas com um gesto ela silenciou minhas desculpas.

— Há quase um mês eu descobri que estou grávida — revelou com os olhos avermelhados —. Há quase um mês, Alex — existia desgosto em sua voz —. E eu ainda não consegui compartilhar essa novidade com o meu esposo porque eu não sei se ele gostaria dessa notícia, nem sei quando é que ele teria tempo para uma conversa que não pode acontecer da maneira superficial como temos feito ultimamente. De que adianta o seu nome estar sendo repetido por entre os jovens que o veneram se o seu filho não puder contar com a sua presença nas festinhas de aniversário, nos eventos de dia dos pais ou na formatura do ensino médio? — questionou incisivamente —. Você precisa decidir se o homem que é diante de uma plateia será diferente do homem que eu não gostaria que o meu filho conhecesse. Penso que de nada importa sermos importantes para o resto do mundo se quem a gente deveria amar só nos conhecer pelo nome.

Ela tinha razão.

Mas palavras não mudariam o que eu havia feito da nossa história até aquele momento.

Então apenas fui até sua direção. Trouxe-a aos meus braços. Pedi perdão. E prometi a mim mesmo que me reconectaria com as minhas verdades.

De certa forma a pandemia teve seu lado positivo. Tivemos a oportunidade de retomar a nossa conexão e então aprendi o que já havia escutado, mas nunca presenciado: o amor não sobrevive por si só, é nosso dever mantê-lo vivo todos os dias. Fiz algumas palestras online, mantive contato com as pessoas que gostavam de me ouvir, mas agora ela fazia parte daqueles momentos, compartilhava conosco as suas opiniões e tornavam aqueles encontros ainda mais especiais e divertidos. Teve até mesmo a ideia de criar uma página na Internet para compartilhar com as pessoas o que era ser uma gestante no meio de uma pandemia. Não demorou muito para que outras pessoas a encontrassem e começassem a compartilhar suas próprias experiências. Vê-la feliz me fazia feliz. E ao mesmo tempo eu me culpava por ter corrido o risco de quase perder aquele privilégio.

E, então, o indesejável.

Recebemos uma visita alguns dias antes de Laurel completar o seu sétimo mês de gestação. Ela começou a apresentar alguns sintomas preocupantes, mas como não havia perdido a capacidade de sentir o cheiro das coisas nem o gosto dos alimentos, então pensávamos que era apenas um resfriado. Só que a situação ficou pior. Até que ela acordou desesperada numa madrugada fria. Chacoalhando meu corpo. Dizendo que não conseguia respirar.

Corremos ao hospital com ela agonizando ao meu lado.

Eu implorava para que mantivesse a calma, ficasse tranquila e procurasse pensar que tudo ficaria bem. Mas o desespero de estar perdendo o ar a apavorava, amedrontava, tornava ainda mais difícil para ela encontrar algum ponto no qual pudesse se refugiar.

Os médicos a receberam com rapidez.

O contato entre nossas mãos foi rompido tão logo a levaram pelos corredores do hospital.

Antes que ela virasse e saísse do meu campo de visão seus olhos me encararam com convicção e sua cabeça assentiu em um gesto de agradecimento. Ela estava me agradecendo. E nós só agradecemos alguém quando sua missão já está cumprida.

Mas eu me recusava a acreditar que havia feito tudo o que podia. Havia mais. Tinha que haver mais. Eu precisava sair daquele hospital com a minha esposa ao lado. Se possível, o que seria ainda melhor, tendo em nossa companhia o nosso filho, a família completa. Viveríamos bons momentos. Desfrutaríamos de todos os prazeres que podem ser proporcionados a pessoas que optam por viver e manter o amor. Eu não queria que as nossas existências se dissolvessem ao ponto de apenas a minha existir a continuar por nós dois.

Também fui atendido. Precisei fazer os exames que, horas depois, apontaram que eu não estava infectado. Aquilo era frustrante. Se eu não havia ficado doente, por que a minha esposa? Não poderíamos trocar de lugar? Embora eu tivesse destaque dentre o público, era ela quem me inspirava a falar sobre a vida, sobre o valor das coisas simples, até mesmo de amor. O que seria de mim sem ela? O que seria da minha existência sem a sua? Como alcançar a completude?

— Alex Camargo? — um médico apareceu na sala de espera depois de horas de terem levado minha esposa.

— Sou eu — levantei-me com pressa.

— Realizamos o parto. Parabéns. O senhor é pai de um menino — aquela fala deveria soar com mais animação, não deveria? Ele deveria estar mais entusiasmado, não é verdade? Eu seria pai! Aquilo era jeito de dar tal notícia? Mas então os pensamentos começaram a se alinhar. Laurel estava em seu sétimo mês. Ainda não era tempo de o bebê nascer. Qual era o problema?

— E a minha esposa?

— Eu sinto muito.

Depois de meia-hora de torpor, incapacidade de aceitar, sentimento de culpa, aquela raiva que nos consome impiedosamente, aquele desejo impulsivo por fazer algo que pudesse transformar a realidade, enfim dei crédito ao médico que me aconselhava a me acalmar, a ser forte, eu tinha uma criança no berçário esperando pela minha visita, esperando que eu fosse até ele e prometesse que o amaria não apenas por mim, mas pela minha esposa também. Naquela hora eu compreendi. Laurel não me agradeceu com o seu olhar. Laurel me pedia para fazer por ela o que ela não poderia fazer.

Meu filho era pequenino. Mais do que as outras crianças que estavam no berçário aguardando o momento de voltarem aos seus pais e seguirem suas vidas. Parecia fraco, o que o médico que me acompanhava disse que era normal pelo nascimento prematuro, mas que logo ele conseguiria alguns quilos a mais, ficaria mais forte e, então, poderia ir comigo para casa. Eu não pude pegar o meu filho, não pude sentir a sua pele na minha, nem pude apreciar o seu cheirinho. Apenas pude tocá-lo pela abertura na lateral da incubadora tendo a mão revestida por uma proteção. Ele era tudo o que me restava do amor de Laurel. Da mulher que por algum momento decepcionei. Da mulher que mais tarde pude reconquistar.

— A mamãe se foi... — com dificuldade na voz, contei a notícia, aceitando dentro de mim que aquela era a verdade, a realidade, que aquilo de fato havia acontecido —. Mas apenas fisicamente, meu querido... A mamãe se foi apenas fisicamente porque a sua existência continuará dentro de nós dois...

As existências não se extinguem.

Elas se misturam.

E, assim, se perpetuam.

(Conto por @Amilton.Jnior)