Sobre perversidade…
Era tarde... o operário negro voltava para casa, junto com o pôr do sol. Sua roupa suada e seu andar pesado, como sua maleta de ferramentas, eram provas que a jornada foi dura; mas a hora do descanso havia chegado.
Se aproximando, no mesmo portão e dentro do seu carro, o soldado branco observava o operário negro, sem saber de quem se tratava. Ele morava naquele condomínio a muito tempo e nunca tinha visto aquele homem ali. Haveria perigo? pensou...
O soldado branco se lembrou de um dia distante, seu treinamento inicial. Naquela ocasião, o pelotão do qual fazia parte entrou numa ruela com muitos corpos de papelão surgindo aqui e acolá, de surpresa. Todos os seus colegas atiraram, menos ele. No final do exercício, o sargento, espumando de raiva, lhe perguntou porque ele tinha sido o "ÚNICO" que não havia atirado; em nenhum momento!
Todos os seus colegas riam baixinho enquanto ele... ah, ele se envergonhava em tentar responder. Quando abriu a boca, apenas um sussurro rápido: “Não quero matar ninguém!”. Todos riram alto, exceto o sargento, que com um aceno de cabeça, silenciou todos. Em seguida, como uma tempestade, desabou em impropérios sobre os outros. O motivo: eles haviam acabado de atirar em inocentes! Todos aqueles corpos de papelão que surgiram do nada, eram moradores fictícios do lugar! Era um exercício de atenção...
Essa lembrança acompanhou o soldado branco, quando ele saiu do carro em direção ao trabalhador negro. “Boa noite, precisa de ajuda?” Perguntou, como quem não queria nada, pois esperava entender a situação. O trabalhador negro lhe retribuiu a saudação e em seguida, lhe explicou que procurava as suas chaves, perdidas na sua maleta de ferramentas; mas sem encontrá-las. Ao que o soldado branco lhe respondeu com suspeitas, ainda que discretas. “Tem alguém que eu posso chamar para te ajudar?”.
Nesse momento, o rosto do trabalhador negro se iluminou como um nascer de lua cheia, lembrando que seria mais fácil chamar sua esposa e filha do que se demorar procurando as chaves. Então lhe disse: “Sim! Sim! Minha mulher e minha filha estão em casa! O número do meu apartamento é o …” e contou-lhe tudo, de modo que o soldado branco, finalmente lendo a expressão e o corpo daquele trabalhador negro, se deu conta que eles eram vizinhos a muito tempo, ainda que os dois, nunca tivessem visto um ao outro; até aquele momento. Não era tarde...
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Num país racista como o nosso, essa é uma estória de ficção. Na nossa realidade, “não há racismo”, mas “alguma coisa” mata apenas pessoas negras todos os dias! No nosso tempo, olhamos para o holocausto e nos perguntamos como aquela atrocidade foi possível! No futuro, as pessoas farão(?) a mesma pergunta, mas sobre o nosso racismo cotidiano.
A diferença entre o holocausto, que matou cerca de seis milhões de pessoas, e o racismo de hoje, filho perverso da escravidão moderna europeia, é que este vem matando desde então, todos os dias (todos os dias...), crianças, jovens, mulheres, homens, todas pessoas negras (todas pessoas negras...), sempre (sempre...). Até quando?