DESLEMBRANÇAS
(Draminha em quatro atos, com epílogo)

  Procópio e Protásio, gêmeos, viúvos, noventa e oito anos, bastos cabelos brancos, brancos bigodes bastos... Seus óculos têm armações douradas (e por que não dizê-las de ouro, eis serem, realmente, de ouro?!); óculos de aros redondos constantemente mexidos e remexidos; lentes acostumadas a esfregações feitas por mãos trêmulas e finas flanelinhas, para desembaçá-las (atos praticados nem sempre por necessidade, mas por cacoete, tão enraizado é o hábito longínquo, do tempo de leitura dos jornais da capital e do Gazeta de Borrego da Serra, periódico local, combativo, brilhante, de opinião, que há muito se foi, empastelado...); óculos que, por serem constantemente mexidos e remexidos por mãos trêmulas, ficam sempre dispostos meio enviezados nos narizes.
  Portam, os imãos, bengalas gentis, envernizadas, esbeltas, leves, bem feitas, mais antigas que eles, pois serviram também ao velho pai, senhor de gordas algibeiras que as colecionava em grande número, de toda espécie e feitio: ora lisas, ora entalhadas, de castões em cristal ou pedraria, ou em prata burilada, já esguias como vara de ubá, já robustas como cajado de braúna, já guardando forma do cipó donde foram tiradas - enfim, variadas bengalas para serem escolhidas qual melhor ficaria aos passeios ou ao trabalho daquele correto senhor, homem de quem os filhos puxaram a retidão.
  Foram, Procópio e Protásio, levados a quentar sol no banco da praça defronte à Clínica e Casa de Repouso Portas do Paraíso, da qual são fundadores e beneméritos.
  Sol luminoso, manhã invernal de céu azul límpido.
  A acompanhante, fiel e diária, única pessoa a quem Procópio e Protásio suportam "naquela casa de loucos" (como até pouco tempo, um ou outro, ou os dois em uníssono costumavam expressar-se) senta-se no banco defronte ao deles, distante apenas dois metros e meio, que essa é, por certo, a largura das aléias do jardim. Enfermeira atenta, prestimosa, paciente, caprichosa, bondosa, é pertinaz ledora dos clássicos, que os lê e relê com frequência (agora mesmo traz um deles), sem jamais se distrair das obrigações de vigilância. De meia idade, ou de idade e meia (se assim achar melhor quem considere seus sessenta e poucos anos como pessoa já entrada nos espaços temporais da terceira idade), talvez por ser gorducha tem a respiração meio ofegante. Hoje mesmo seu respirar está mais acentuado, parecendo ter chegado de longa e cansativa caminhada.
  Como se vestem os irmãos nesta manhã ensolarada e de temperatura amena, mas que requer cuidado com a saúde dos anciãos, pois a madrugada fora bem fria e bastante propalada a geada durante a noite finda?
  ...Vestem-se à semelhança um do outro: pijamas em tecido de algodão, brancos, com discretas listras verticais, finas, quase imperceptíveis a quem as queira esquadrinhar, pois há o fato de os homens estarem agasalhados com robes-de-chambre aflanelados, com desenhos de miúdas flores-de-lis a enfeitá-los, robes de cor cinza nem tão escura nem tão esmaecida, realçada pelo brilho natural do tecido em cetim. Nos pés, protegidos em meias de lã, chinelos marrom-café, feitos a mão, de gáspeas em pelica (mesmo material das palmilhas estofadas),  e solados em couro fino, bem batido e acabado.
  Algum tempo em silêncio, voltados à melhor acomodação dos seus ossos magros no encosto e assento do comprido banco em réguas... - e principiam falação.   
                                                          -- Ato I --
  Procópio - Ahn!... Agora eu lembrei!
  Protásio - Lembrou de quê?
  Procópio - De que, o quê?
  Protásio - ...você lembrou.
  Procópio - Lembrei?
  Protásio - Lembrou!
  Procópio - De quê?
  Protásio - Ora, de quê!
  Procópio - Ora de quê, o quê?
  Protásio - De quê!... de quê!...
  Procópio - 'Tá parecendo doido!
  Protásio - Quem?
  Procópio - Quem, o quê?
  Protásio - Quem o quê, o quê?
  
Procópio - (sussurra) 'Tá parecendo doido!...
  Protásio - (sussurra) 'Tá parecendo doido!... 
  Procópio - (...)
  Protásio - (...)

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  O diálogo entre eles torna-se repetitivo; perguntas e respostas sem nexo transformam-se em recheio quase sem fim. Até que se calam... E calados põem-se a apreciar cada qual sua bengala, medindo-as a palmo, dos castões às ponteiras, repetidamente, como se desejosos de confirmarem as medidas dos bastões. Na verdade fazem isto sempre. Quem não os conhece pode imaginar estarem-se arremedando. Mas, não. Nem de soslaio trocam olhares. Ficam alheados, concentrados apenas no que fazem.
  Acostumada a tais mesmices, Genara vê, nisto, uma prova de não estarem, ainda, acometidos da apatia observada em tantos pacientes que sofrem do mal que os limita. Sempre vigiando, de tempo em tempo levanta os olhos da leitura e observa-os; e torna ao livro.

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                                                          -- Ato II --       
  De repente, grito espalhafatoso de Procópio sobressalta Genara e Protásio, e a faz levar a mão ao coração.
  Procópio - (gritando) Aaaah!... 
  Protásio - (surpreendido) Ahn?!...
  
Genara - (assustada, olhos arregalados; livro cai) Meu Deus!!! Que foi, Seu Procópio?
  Procópio - (cofia o bigode, sorri maroto; olhar distante) É!... É sim!... Agora  eu lembrei!...
  
Protásio - ...de quê, de quê?
  Procópio - De que, o quê?!
  Protásio - ...você lembrou.
  Procópio - Lembrei?...
  Protásio - Lembrou! 
  Procópio - De quê?
  Protásio - Ora, de quê!...
  
Procópio - Ora de que, o quê?
  Protásio - De quê!... De quê!... quê!...
  Procópio - Você é esquisito!
  Protásio - Eu?
  ProcópioÉ!
  Protásio - Éééé!... Éééé o quê?!
  Procópio - (irritado) Éééé o quê!... Éééé o quê!...
  Protásio - (irritado) Ééée o quê!... Éééé!... Éééé!...
  Procópio - (...)
  Protásio - (...)

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  A lembrança proclamada com estardalhaço é, no entanto, logo esquecida. De novo, o diálogo entre os irmãos torna-se repetitivo; a medição das bengalas recomeça, qual filme de comédia muda que, interrompido, volta às cenas iniciais, reprisando-as.  
  O inesperado deixa Genara inquieta; sente algum desconforto; tenta voltar à leitura; pega o livro no chão, contudo, as mãos trêmulas, uma não lhe permite segurá-lo com firmeza, outra, ocupada com um lencinho, enxuga-lhe de leve (mas nervosamente) a testa e as comissuras da boca, gestos continuados que indicam não ser apenas a incisiva quentura do sol mais aprumado que os provoca, mas, também, a tensão pelo susto.

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                                                          -- Ato III -- 
  Alguém que passa ligeiro por ali, e os conhece, cumprimenta: 
  Passante -  Alô, Seu Protásio, Seu Procópio, Dona Genara! Booom diaaaa!

  Procópio - Doido!
  Protásio - Doido?
  Procópio - É!
  Protásio - Quem? 
  Procópio
- Aquele!
  Protásio - Quem?...
  Procópio - (estica o queixo) Aquele lá! É doido! Me chamou de Po... Potrásio!
  Protásio - Potrásio?! 
 
Procópio - É!
  
Protásio - Potrásio!... Você chama Potrásio?

  Procópio - (resmunga) Ele é doido!
  Protásio - Potrásio... é doido?...

  Procópio - (resmunga) Ele é doido!
  Protásio - Potrásio!... Potrásio é doido!
  Procópio - (...)
  Protásio - (...)

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  ...E quem é Genara?...
 " - Não se esqueçam de Genara!" - foi a recomendação do senhor das gordas algibeiras quando, tempos atrás, legou a Procópio e Protásio o seu robusto patrimônio que, disse, não mais lhe caberia administrar. Na época, Procópio e Protásio já eram casados e pais, cada qual, de dois filhos (gêmeos!) e uma filha - as mais novas, nas respectivas proles.       
  Genara é coetânea das caçulas. Nas brincadeiras de donas de casa ela mesma nomeava-se "ama das crianças" (bonequinhas e bonequinhos), às quais banhava, dava comidinhas, trocava fraldas, vestia, penteava, fazia dormir... enquanto as outras cuidavam das demais tarefas. Nas "saídas para visitas" nem sempre Genara acompanhava-as; preferia "...ficar em casa, pois o passeio pode ser demorado e os pequenos não devem estar sozinhos", indo, as irmãs, peregrinar pelos amplos quintais, lábios pintados com "batons" de manteiga de cacau ou chocolate, certas de seus nenês estarem em segurança. 
  Filha única do administrador das fazendas, Genara com elas conviveu estreitamente na infância e adolescência, tornando-se  amigas "unha e carne". Às expensas das distintas famílias, foi para a capital com as companheiras, onde cursaram preparatórios e escolheram suas carreiras universitárias. Genara optou por enfermagem. Graduou-se em pediatria e neonatologia, reafirmando, assim, o instinto maternal desde cedo aflorado.
  Trabalhando na capital, casou-se com rapaz também enfermeiro. Entretanto, a natureza não lhes permitiu gerar o descendente esperado. Estavam ainda indecisos sobre adoção ou possível alternativa médica para, enfim, tornarem-se pais, quando o falecimento precoce do jovem marido desfez o sonho.
  Genara, viúva, orfã, sem parentes consanguíneos, desiludiu-se de ser mãe. A tábua de salvação da náufraga foi o seu entranhado instinto maternal, que lhe proporcionou nova perspectiva; então, tanto quanto lhe permitissem as oportunidades iria entregar-se, definitivamente (como, de fato, ocorreu), às lidas em berçários.
  (...)  
  Viriam mais tarde as perdas simultâneas das esposas de Procópio e Protásio, quando estes começavam a apresentar sintomas do mal que lhes não mais possibilitaria estar à frente dos negócios. Aos herdeiros, todos com obrigações definidas e morando no exterior, não lhes seria também possível voltarem para cuidar dos pais.
  ...Consultaram Genara... E não por interesse, mas, por amor e gratidão, ela veio cumprir a missão junto àqueles que, afinal, considerava como a sua própria família.
  (...)
  Procópio e Protásio, aqueles que a viram crescer, agora impedidos até de movimentarem-se para vestir uma peça de vestuário, doravante seriam seus bebês, a quem daria comidinhas na boca, trocaria fraldas, daria banhos...    
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                                                          -- Ato IV --
  Há mais de uma hora os irmãos estão na praça. Já deveriam ter voltado à clínica; no entanto, andam pelas aléias com passos miúdos e arrastados, pernas meio abertas. As fraldas talvez estejam incomodando, pois esfregam as virilhas. Estão separados, distantes um do outro, e de Genara, que deve estar distraída e isto não é comum.
  O homem que passara mais cedo, agora volta e encontra-os naquela situação. Sem saber a qual, dirige-se a um deles:
  Passante - Tudo bem com o senhor? (...) (insiste:) - Tudo bem com o senhor e seu irmão?... 
  Recebe como resposta o silêncio de um olhar vago. Dirige-se à Genara: 
  Passante - Dona Genara! (...) Dona Genara! (...) Dona Genara!?... (diz para si:) - Puxa, que sono pesado!
  Recostada, cabeça um pouco reclinada para a frente, ela não desperta; parece muito cansada, sua respiração é sibilante. Não  querendo acordá-la abruptamente, faz-lhe cócegas na mão que segura o livro firmemente apoiado sobre os joelhos, porém, nada resulta. Decide, então, ir à clínica, e, na entrada, encontra um médico. 
  Passante - Bom dia, doutor! Os irmãos estão caminhando sozinhos e Dona Genara está dormindo e roncando! É como um assobio!
  O profissional volta rápido ao consultório de onde viera, pega seus aparelhos e sai, ordenando:
  Médico - Depressa,  peguem a maca! 
  (Ele sabe, Genara tem saúde debilitada; sofre de asma e de arritmia cardíaca constatada quando, ainda criança, desmaiou e demorou a voltar a si, por um susto que lhe foi aplicado pelos meninos da família.)
  Chega logo chamando-a pelo nome (...) depois, ausculta-a (...) toma-lhe o pulso (...). Intrigado, repete o exame (...). Confirma.      
  A custo, tira-lhe o livro da mão, aberto na última página da obra de Gorki - "A Mãe". Tal apego desperta sua curiosidade, fazendo-o  dirigir o olhar para a parte final do texto possivelmente lida por Genara: ali, então amarrotados pela pressão dos dedos hirtos da enfermeira, o sofrimento e o desespero de Pelaguéia, heróica defensora do filho.
  Médico - (balançando a cabeça, fazendo o sinal da cruz, diz, pesaroso:) - Levem-na! Com cuidado!
  Todos ao redor da cena acompanham o gesto.
  Genara não despertaria.
  (...)
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                                                          -- Epílogo --
  - Não se esqueçam de Genara! - fora a recomendação. Eles não a esqueceram. 
  Em breve chegarão suas companheiras "unha e carne", vindas do exterior. Visitarão os túmulos dos avós e de Genara, localizados numa discreta área ajardinada, florida e reservada nos próprios da clínica. Deixarão, nos sepulcros, ramalhetes de gipsofilas e rosas brancas, flores preferidas pela menina cuidadora de "nenês", que sempre as arranjava para enfeitar as casas das brincadeiras.
  Para cuidar dos anciãos Genara escolhera viver num pequeno aposento ligado ao deles, no interior da casa de repouso . Lá estão seus poucos pertences, entre os quais um envelope lacrado com pingos de breu, sinetados, que será entregue às senhoras, pois somente a elas caberá abri-lo. Nele, o documento oficial, público, assinado por todos os membros (pais, mães, filhos, filhas)  dispondo Genara como herdeira da familia com quem convivera, tocando-lhe quinhão igual ao dos herdeiros legítimos de  Procópio e Protásio. Ainda no envelope, outro instrumento, oficial, público, cujo teor as senhoras só conhecerão no ato da abertura: onde Genara, agradece àquelas pessoas pelo que lhe proporcionaram, e dispõe, qual seja a situção futura (sua morte, ou de um dos anciãos), sua parte deverá favorecer a Clínica e Casa de Repouso Portas do Paraíso.
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  As filhas de Procópio e Protásio logo perceberão que a falta de Genara os terá baqueado. Em tão pouco tempo, agora só alheamento: não mais as conversas, falações sem sentido... olhares? (nem de soslaio)... medição de bengalas... andanças...
  Doravante, a apatia causada pelo Alzheimer não lhes permitirá "quentar sol", realidade que as abalará e fará chorar. Não poderão ficar com os pais. Não poderão levá-los consigo.
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  (...a comidinha na boca... a troca de fraldas... os banhos... o pentear dos cabelos!...
  (Quem ninará, como Genara, aqueles... aqueles frágeis bonequinhos...(de trapo?!). 
                                                                                 
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Nov. 06, 2015