As Sombras
Primeiro há uma letargia que invade tudo, o corpo, a mente, a capacidade de reacção. Olha-se o mundo de fora como se nada tivéssemos a ver com ele. Alonga-se o tempo de dormir, fica-se na modorra dos dias alheadamente distantes. Doem as ausências e os problemas, insolúveis, ficam a pairar como peias que nos acorrentam a uma vida intolerável. A morte de todos os que tinham importância sucedeu, espaçada no tempo, ao longo dos últimos anos. Alguns fizeram uma falta relativa, outros deixaram, tremenda, uma parede branca que não podia escalar. A solidão tornou-se de imperceptível a muito constante.
Voltou ao trabalho e as horas pesavam menos, a atenção necessária à função estava vigilante. Era durante a noite que vinham as sombras. O Pai jovem, ele menino, a Mãe combativa, ele apoiante. Dos irmãos não sabia. Ficavam estáticas as sombras em retratos mutantes mas sempre delidos. Misturavam-se à chuva, eram chuva ou, vinham no ocaso como evocação indefinida.
Deixou de contar com a opinião e o apoio de quem já não estava. Agora, limitava-se a dizer para dentro que tinha de pensar mais no assunto. Pesava e media, decidia, aceitava ou recusava por si mesmo.
Era um homem solitário e decidido quando ela entrou na sua vida. O tempo amainou, todos os caminhos ficaram possíveis e as sombras aquietaram-se nas molduras dos retratos, nos álbuns de família, no universo das coisas que temos sem ter. Voltaram as sombras no carácter dos filhos, na similitude de gestos e olhos, trejeitos de boca, posturas corporais. Estavam neles sem estar, vinham sempre que os lembrava .