Uma vida desperdiçada

Ela deu o estalo quando percebeu o prenúncio do fim. É mais fácil condecorar a si mesma como guardiã das grandes virtudes, a tal ponto onde os erros estão em outrem e não em seu âmago. Se pergunta: ‘’por que disso?’’, ‘’que decadência este mundo’’, ignorando seu próprio ser, a senhora julgadora das finalidades últimas não percebe a penumbra escondida em seu próprio coração. Rabugenta como uma bruxa, de aparência desprezível como tal: cabelos louros, mas quebradiços. Olhos de ímpeto aristocrático, justaposto à boca curvada para baixo, feito sua pele desgastada pelo tempo. Viveu seus últimos 70 anos nas masmorras morais, apontando o dedo a todo momento, quem dera se fora para conselhos bons. Arrumou tantas discussões… seu temperamento colérico queimava o bem-estar de qualquer um em seu caminho. Sempre se achou a correta, mas seu inconsciente lentamente abria as portas da percepção: a luxúria, a avareza e a gula são a tríade formada na mais alta sinceridade. Não teve paixões, pois julgava homens como frutos proibidos e podres; deu tudo o que tinha aos pobres de sua região, mas seu sonho era ser milionária e fugir da cidade; gostava de muitos doces, balsou-se em todos eles, como uma criança inocente, mas esquecia que seu corpo pagou um penoso preço por isso.

Olha as fotos de outrora, passa suavemente seus dedos anciãos sobre as gravuras de um dos quadros prediletos. Desliza a unha na imagem, enquanto lentamente a lágrima decai por se recordar uma vida perdida por bobagem. Mentiu tanto para si que já não sabe mais alinhar com destreza o certo e o errado. Dissimulou ser um exemplo de cidadã, faltando com respeito as verdades universais, restando somente a lamúria verdadeira, só isso.

Deitou de bruços no chão empoeirado, engolindo não só a sujeira da residência, mas a crua honestidade inexistente até então. A chuva estava tão forte, o clima frio como se a Groenlândia estivesse em casa. A velha resolveu pedir perdão as paredes por tudo o que proferiu de sua maldita boca. Sussurrou com dificuldade de admitir, porém, com êxito: ‘’Perdão por não ser o que deveria, e perdão por sucumbir aos pecadores inferiores. Peço perdão para toda e qualquer pessoa ou Deus por tudo.’’. Neste momento, um raio poderoso e com espírito raivoso, como se Zeus estivesse mandando, caiu uma das árvores ao lado de sua casa. O barulho estrondoso para assustar o mais valente dos homens, foi o suficiente para o augúrio ocorrer. Sua cabeça estalou com uma força sobressalente. A senhora morreu prostrada e angustiada no chão. Talvez tenha encontrado a paz, talvez não, ao menos teve a clarividência de seus erros.   

Reirazinho
Enviado por Reirazinho em 13/01/2022
Reeditado em 23/01/2022
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