SOBRE METRÓPOLES E APARTAMENTOS

Arrastei a última caixa da mudança e larguei no meio da sala. Fechei a porta atrás de mim, me deitei no chão e fiquei com os olhos cravados no teto esperando que minha respiração voltasse ao normal. Nunca gostei de mudanças, apesar de ter passado a vida toda me mudando quando morava com meus pais e até quando comecei a viver sozinho... Era sempre exaustivo ter que me mudar e me adaptar a um novo lugar... Mas essa vez era diferente. Parecia muito pior.

Olhei para os meus poucos móveis espalhados pelo apartamento e para as minhas caixas cheias de livros e DVDs. As únicas coisas que eu me dava o luxo de colecionar. Pensei em quanto tempo eu levaria para arrumar aquilo tudo, e resolvi deixar a organização para depois. Fui até o banheiro e soltei as minhas duas gatas, para que conhecessem o apartamento. Elas dispararam pelo corredor e se esconderam atrás das caixas dentro do quarto. Então, andei até a cozinha, liguei a geladeira na tomada e bebi um gole de água. Na verdade, eu precisava de uma cerveja, mas teria que acordar cedo no dia seguinte, e uma cerveja sempre chamava a próxima... então deixei essa ideia de lado. Voltei para a sala, me sentindo sufocado pelo calor do apartamento, abri todas as janelas e arrastei meu colchão até o quarto. Encostei-o junto a uma parede, liguei o ventilador em minha direção e me deitei. Fechei os olhos, e passei a contar os pensamentos ruins que se sucediam na minha cabeça. Mesmo tão cansado, não era fácil dormir.

2

Acordei horas depois, ensopado de suor. Mesmo com o ventilador ligado, eu parecia preso dentro de uma sauna. Conferi a hora no celular e vi que eu tinha dormido por quase quatro horas. Seria difícil pegar no sono novamente.

Fui até a sala e enrolei um cigarro com o resto de erva que eu tinha. Seria o último, tirando os galhos. Acendi o fumo e fiquei olhando a rua pela janela. Estava tudo tranquilo lá embaixo. A solidão das ruas só não era maior do que a minha.

Não sei quanto tempo passei ali depois que o fumo já tinha se apagado. Eu não tinha dinheiro na minha carteira, nem mulheres na minha cama, nem versos para escrever na tela do computador. Não havia nada. Só teias e aranhas, livros, poeira e traças.

Só havia eu. E o resto das histórias que eu não sabia como contar e que ninguém se daria o trabalho de ouvir.

3

Duas e meia da madrugada. Eu ainda estava acordado. Remexi nas caixas da cozinha até achar um sachê de chá de erva doce. Enchi um bule com água e coloquei para esquentar no fogão.

A água não demorou a ferver. Virei o conteúdo do bule dentro de uma xícara e lancei dois sachês dentro. Balancei até que a água tivesse se tornado amarelada e retirei os saquinhos de dentro. Procurei por açúcar na caixa onde tinha encontrado o chá, mas não achei nada.

Peguei a xícara do jeito que estava e fui até a sala. As gatas estavam arranhando a porta, já entediadas do ambiente fechado que era o meu apartamento. Abri a porta e deixei que fossem até o jardim que ficava no térreo. As duas correram pelo espaço aberto e desapareceram pelas escadas. Antes que eu fechasse a porta, algo no apartamento ao lado me chamou a atenção. A porta estava entreaberta e eu pude ouvir o barulho de alguém tocando piano. Seja quem fosse, tocava muito bem. Tomei um gole do chá, ainda quente, e me desagradei do gosto. Resolvi perguntar ao vizinho pianista se teria algum açúcar para me emprestar.

Fechei a porta atrás de mim e fui em direção ao som. Bati na porta, ninguém respondeu, mas a música parou. Logo, uma mulher vestida com uma camisola azul veio até a porta e me olhou diretamente nos olhos

- Pois não? – Perguntou

- Bom dia – Falei, um tanto sem jeito.

Os olhos da mulher eram quase tão azuis quanto a camisola que ela vestia. Os cabelos eram ruivos, cor de ferrugem, e ela tinha sardas nas maçãs do rosto.

Parecia ter pouco mais de trinta anos.

- Bom dia. Ela respondeu, sem tirar os olhos de mim.

- Desculpe incomodar. Mas a senhora teria um pouco de açúcar? – Falei, com a xícara de chá nas mãos.

- Açúcar?

- Sim. Estou com insônia e resolvi tomar um chá de erva doce para ver se ajuda com o sono. Mas não tem açúcar pra acompanhar. Acabei de me mudar.

Ela me olhou inquisitivamente e enrolou os cabelos no dedo indicador.

- Moço. Nunca lhe disseram que açúcar corta o efeito de qualquer chá?

- Eu sempre achei que era crendice.

- Bem. Era o que minha mãe dizia. E crendice ou não, eu gosto de acreditar que ela estava certa.

Concordei com a cabeça e tomei um gole do chá, mesmo sem açúcar.

- Você não quer entrar? – Ela perguntou – Também estou sem sono.

- Não seria incômodo?

- De forma alguma. Seria bom ter algum tipo de companhia para variar.

Ela se afastou e eu entrei na sala. Ela fechou a porta e apontou para o sofá para que eu sentasse. Sentei-me na beira, com as mãos entre as pernas e ela sentou-se de costas para o piano.

- Meu nome é Juliana, e o seu?

- Me chamo Rômulo.

- Você se mudou hoje para cá?

- Sim. Ainda nem arrumei minhas coisas.

- Você mora só?

- Moro com minhas duas gatas. E você?

- Estou sozinha... já há um tempo. Desde que meu marido me deixou.

- Sinto muito por isso.

- Eu também sinto. Mas enfim. Não importa. Estou morta para ele... – Juliana respondeu tristemente.

Um vento gelado entrou pela janela e balançou as cortinas e a barra do vestido de Juliana, e eu pude sentir alguns pingos de chuva molhar meu rosto.

- Aí vem chuva – Ela disse.

- Espero que sim. Não aguento mais tanto calor.

Juliana deu um sorriso amarelo, se levantou e fechou a janela, deixando apenas uma pequena fresta, depois sentou-se novamente ao piano, mas dessa vez de costas para mim, e começou a dedilhar as teclas. Então, parou subitamente de tocar e cantou, quase como em um sussurro.

Please could you stop the noise, I'm trying to get some rest

From all the unborn chicken voices in my head

What's that?

What's that?

When I am king, you will be first against the wall

With your opinion which is of no consequence at all

What's that?

What's that?

Depois do último verso, Juliana silenciou e voltou a arrastar os dedos pelas teclas.

- Essa música é um pedaço da minha vida. Mas é difícil encontrar alguém que goste de Radiohead... – Falei, ao reconhecer os versos.

- Também gosto muito... A tristeza deles sempre combinou muito com a minha.

- Você toca muito bem. E sua voz... parece ter sido feita pra essa música.

Juliana rodou com o banco e olhou para mim.

Havia lágrimas escorrendo pelos seus olhos.

- Eu pareço uma pessoa inútil pra você, Rômulo? – Ela me perguntou, entre soluços.

- De forma alguma. Apesar de mal lhe conhecer, penso justamente o contrário.

- Então por quê?...

- Porque o que?

- Por que eu estou aqui sozinha? Presa a esse lugar? Presa a essa vida?

Fiquei calado por não saber o que dizer.

- Imaginei que você não teria uma resposta – Ela continuou, e se voltou novamente para o piano. Mas dessa vez nenhum som veio do instrumento.

Me levantei e toquei o ombro de Juliana com minhas mãos. Ela pareceu estremecer com o meu toque e se virou. Por um tempo fiquei encarando aquele par de olhos azuis até que quebrei o silêncio com todas as palavras que consegui juntar.

- Acho que você é o tipo de mulher que poderia ir a qualquer lugar que quisesse. E qualquer pessoa que não consiga ver isso é um idiota.

Pela primeira vez, Juliana abriu um sorriso. Então se levantou do banco em que estava sentada, me deu um beijo leve nos lábios e se afastou, desaparecendo no corredor que levava aos quartos. Resolvi deixa-la sozinha e voltei ao meu apartamento, ainda com a voz dela ecoando em meus ouvidos. Me joguei no colchão e coloquei o celular para despertar as sete da manhã. Dessa vez, não demorei muito para cair no sono.

4

Pulei da cama com o toque do celular. Tomei um banho, me vesti e segui para o trabalho. A porta do apartamento de Juliana estava fechada. Estava tudo em silêncio lá dentro.

Esperei sinceramente que ela estivesse bem. Talvez mais tarde pudéssemos conversar a respeito da noite anterior. Fui ao trabalho e atravessei o dia pensando nela. Ao fim do expediente, me arrastei para casa, enfrentando trânsito e ônibus lotado, desejando apenas em tomar um banho e dormir um pouco.

Sufocado, dentro do coletivo lotado, desci duas paradas antes do meu ponto e andei o resto do caminho. Na rua, os carros presos no trânsito, vomitavam fumaça e veneno, e os motoristas buzinavam até a morte uns dos outros. Eu me dava por satisfeito por poder andar, me desviando dos passantes, e por respirar um ar menos estagnado do que o do ônibus lotado. Enfim. Aquele era o mundo que eu vivia e com o qual já estava acostumado, tragicamente ou não. Talvez eu estivesse tão preso quanto Juliana dizia que se sentia... e só não percebesse. Então, desejei poder estar em outro lugar... desejei poder respirar um ar diferente e experimentar um tipo mais ameno de solidão, do que aquela contradição em que eu vivia... cercado por todo tipo de pessoas, mas incapaz de me comunicar de uma forma real. Talvez fosse melhor estar em uma ilha deserta do que em uma metrópole violenta e claustrofóbica, abarrotada e ao mesmo tempo tão vazia.

Dei de cara com o meu prédio ao fim desse pensamento e o porteiro me deixou entrar com o toque de um botão.

Nos cumprimentamos com o gesto de cabeça usual e eu segui até o meu bloco.

Subi as escadas e abri a grade do meu apartamento. Tinha deixado a porta entreaberta para que as gatas pudessem transitar livremente. Elas estavam jogadas no meio da sala, letárgicas, provavelmente pelo calor, ou cansadas de não fazer nada. Deixei minha bolsa encostada em uma parede e me despi no caminho para o banheiro.

Tomei um banho rápido, me enxuguei e vesti uma bermuda e uma camiseta.

Me contentei em jantar pão com ovos mexidos e uma xícara de café preto, sem me lamentar pela falta do açúcar que eu havia me esquecido de comprar.

Então me lembrei de Juliana e resolvi ir até o seu apartamento.

Bati na porta e não houve resposta. Insisti e nada. Virei a maçaneta e vi que a porta estava aberta. Minha xícara estava no chão da sala, mas de resto, o apartamento estava vazio. Vazio e empoeirado. Saí do apartamento e desci as escadas a toda velocidade.

Fui até o porteiro, que estava sentado em uma cadeira plástica ouvindo um rádio de pilha.

- Boa noite seu Jorge. – Falei.

- Boa noite Rômulo – Ele respondeu. – Aconteceu alguma coisa?

- Sim. Seu Jorge. A moça do Apartamento 202 se mudou hoje?

- Do 202? Do seu bloco?

- Sim. Do meu bloco.

- O apartamento 202 está vazio, Sr Rômulo Já têm uns dois anos.

- Dois anos? Como assim?

- Um casal morava lá. Mas aí o marido matou a esposa estrangulada, em uma briga e desapareceu... Dizem até que ele fugiu do país.

As palavras do porteiro trouxeram um frio gélido à minha barriga e o mundo girou diante dos meus olhos.

- O senhor está bem? – Ele perguntou finalmente.

- Estou sim... – Respondi, depois de respirar fundo. – Obrigado, seu Jorge... e boa noite.

Me virei e comecei a andar de volta para o meu apartamento. Mas então parei e me dirigi ao porteiro.

- Seu Jorge. Como era o nome da mulher que morava no 202?

- Juliana... uma moça muito bonita, um doce de pessoa... tocava piano... era muito talentosa. Foi uma tragédia o que aconteceu.

- Sim... Uma tragédia... – Sussurrei.

Voltei para o meu apartamento, desolado. Me sentindo mais solitário do que tinha estado em qualquer outro momento da minha vida. Subi as escadas e olhei uma última vez para o apartamento de Juliana antes de entrar. Um vento frio escorreu em minha direção e eu tive a certeza de ouvir alguém sussurrar...

“Rain down

Rain down

Come on, rain down on me

From a great height...”

Fechei a porta atrás de mim, liguei o computador e me pus a escrever sobre toda a solidão que eu sentia.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 13/01/2022
Código do texto: T7428647
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