O AMOR SOBREVIVE ÀS TRAÇAS

- Eu ainda vou mijar na sua cova, seu veado velho - Gritou a vizinha, para o marido, antes de jogar um tanto de roupas pela janela.

O homem lá embaixo juntou algumas delas dentro de uma sacola, tirou um cigarro do bolso da camisa, acendeu e olhou para cima. A esposa tinha desaparecido por detrás das cortinas, mas ele continuou com o olhar fixo na janela. Havia uma tristeza profunda em seus olhos. Como se ele soubesse que algo havia se partido para sempre. Ou talvez só estivesse cansado... vai saber.

O homem deu um trago no cigarro e sabendo que eu tinha visto tudo, me cumprimentou com a cabeça antes de virar as costas e ir embora, como o seu saco de roupas pendurado no ombro.

- No fim das contas só resta o ódio. – Pensei, antes de voltar para o computador à beira da minha cama.

Tomei um gole de café e retornei para as minhas palavras soltas na tela.

Me perguntei sobre o que o homem teria feito para merecer que sua esposa urinasse sobre ele após a morte. Certos rancores transcendiam o tempo e a barreira que separa os vivos e os mortos, pelo jeito. Aquilo me embrulhou o estômago, e eu tive vontade de vomitar o café que havia bebido, junto com o pensamento.

Lígia saiu do banheiro com uma toalha enrolada na cabeça e sentou-se na cama, ainda molhada.

- O que você está escrevendo? - Perguntou.

- Nada especial – Respondi.

- Você sempre diz a mesma coisa.

- É...

Eu não tinha muito a lhe dizer. Enfim... por isso fiquei calado.

Lígia, resignada, voltou a sua atenção para o seu celular e foi como se uma barreira tivesse crescido entre nós dois naquele instante. Retornei mais uma vez para o computador, mas as palavras insistiam em não se juntar.

Desisti delas. Mas insisti no café.

- O que você pensa em fazer quando eu morrer? – Perguntei a Lígia, quando já não havia o que beber na minha caneca.

Lígia saiu do seu transe e deixou o celular de lado.

- Que tipo de pergunta é essa?

- Quando eu morrer? Como vai ser pra você? – Insisti.

- Como você sabe que vai morrer primeiro que eu? Pode muito bem ser o contrário.

- Então me deixe refrasear. No caso em que eu morra primeiro, o que você faria?

Lígia inspecionou as unhas das mãos e aparou uma delas com os dentes. Depois respirou fundo e me olhou como se tentasse saber o que eu estava pensando.

- Primeiro eu iria ao seu enterro e depois eu choraria por alguns dias.

- E então?

- Acho que eu tentar organizar todos esses textos que você escreve e não publica. Se não fosse me doer demais ler tudo.

- E o que você faria com minhas coisas?

- Acho que iria doar para quem precisa, ou para os seus amigos bêbados.

- Eu ficaria honrado se você fizesse tudo isso.

- Você já estaria morto, meu amor. Não faria diferença alguma para você depois da morte.

- Mas faz agora. – Respondi.

Lígia veio até mim, me deu um beijo na boca e olhou para o que eu havia escrito na tela do computador.

“O amor sobrevive às traças dos livros... Resistirá ele às larvas no meu caixão?” - Eu havia escrito.

- Sempre gostei dessas suas abstrações – Ela disse, entrelaçando os dedos de nossas mãos. – Mas prefiro quando você escreve sobre coisas vivas.

- Vou tentar. – Respondi, fechando o computador. – Mas vou deixar isso para amanhã...

Lígia me beijou novamente, deitou-se na cama, puxou minha cabeça para perto do seu seio e começou a mexer no meu cabelo com as pontas dos dedos.

Subitamente, não me importavam mais os pensamentos de amor e morte.

Fechei os olhos, satisfeito por estar com ela enquanto vivo.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 11/01/2022
Reeditado em 11/01/2022
Código do texto: T7427052
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