PEQUENA CIDADE DO INTERIOR DE UM COPO

É comum olhar cidades da janela do avião e deleitar-se (ou não) com as imagens dos respectivos monumentos, edifícios, casas, carros e transeuntes. Pode-se até mesmo compor um belo samba, como o fez emérito compositor carioca.

Habitual, também, é contemplar as praças cheias de vida das crianças, jovens, adultos e idosos, além das árvores, parques e jardins sobreviventes no espaço urbano.

Cidades, grandes e pequenas, encontram-se ao alcance da observação de todos, no Brasil e mundo afora.

Cidadezinha do interior de um copo, no entanto, somente poucos são capazes de ver. Mourão, que tinha por alcunha “Pensador do Boteco”, podia vangloriar-se de semelhante capacidade, posta em prática especialmente quando os companheiros de mesa ainda não haviam chegado para mais uma rodada de comes e bebes. Enquanto aguardava os amigos, olhava vez por outra para o fundo do copo, pouco importando se estivesse vazio ou parcialmente preenchido de cerveja, e distraía-se com as imagens ali refletidas.

Invariavelmente visualizava o pequeno distrito de Anta, onde nascera, no município de Sapucaia, interior do estado do Rio de Janeiro. No alto do morro, identificava a velha capelinha, aonde, menino, ia com a avó Idalina ou a mãe Finoca. Das rezas e ladainhas, restara em sua memória somente um murmúrio ligeiramente musicado e ininteligível, pois nunca mais as entoara, ele que permaneceu católico a seu modo exclusivo. Inesquecível capelinha, que já não existia mais: dera lugar a uma construção moderna e pretensamente mais significativa para a comunidade local.

Mourão revia a antiga farmácia que cuidava dos seus bichos do pé e de outros males dos que costumam andar descalços nos caminhos de terra da pequena cidade. Tivera um ferimento maroto que quase lhe causou séria gangrena. Recordava do armazém do sírio bonachão, amigo de seu pai, que também fora comerciante local, mas de dimensão e resultados ainda mais modestos. Quem mandara vender fiado? Defronte ao armazém, a pracinha com o coreto, típica dos padrões brasilianos.

No fundo do copo, forçoso reconhecer, Anta aparecia mais arrumada, limpa e próspera aos olhos de Mourão do que seria condizente com a realidade. Não que ele fosse idílico a ponto de construir mera representação fantasiosa do seu berço de origem. O “Pensador do Boteco” possui o necessário equilíbrio entre realismo e idealismo que contribuiu para o prestígio de que usufrui entre seus colegas de escritório e companheiros do bar. Sempre bom de papo e bem inspirado nas suas tiradas sobre os mais variados temas da “agenda” da turma. Sua alcunha não se deve ao acaso.

A pequena cidade refeita no copo ia além, de todo modo, dos contornos antenses. Compunha-se também de imagens de outros centros urbanos visitados por Mourão, em particular das encantadoras cidadezinhas alemãs que ele tivera oportunidade de conhecer e apreciar em dois passeios feitos com a mulher e o filho na Europa. De Anta para o mundo, a experiência de viajante inspirava as lembranças projetadas no próprio copo para moldar a urbe interiorana irretocável. Não se trata somente de reconstruir e harmonizar casas, ruas e jardins de saudosa memória, mesmo porque de nada valem os mais lindos logradouros sem a presença humana.

Mourão sabe disso perfeitamente. Tanto assim que a cidade por ele visualizada sempre agrega ao plano arquitetônico os traços de muita gente. Avó, mãe, pai, esposa, filho, parentes e amigos povoam, num piscar de olhos, praças, igrejas, escolas e tudo mais. A pequena cidade do interior do copo também provém do interior do coração e da mente que a reconstituem. Por isso é tão atrativa e presente onde quer que paire, na verdade, o olhar e o pensamento de quem a evoca. Copo ou tulipa, toalha ou parede, qualquer tela serve bem ao propósito, desde que se tenha a capacidade de visão correspondente.

O Pensador do Boteco continua a olhar carinhosamente para o copo que tão agradáveis imagens lhe traz. Eis que começam a chegar seus companheiros, a quem dá as boas-vindas com seu costumeiro sorriso. Percebendo o indisfarçável ar de emoção no rosto do amigo, um deles não se contém e comenta:

“Cara, tenho a impressão de que você andou viajando lá praquelas bandas do interior, não foi?”

ABRIL 2019