Rua

Desde sempre fui muito faladora, mas quem quer ouvir uma velha? Quem quer, em meio a correria cotidiana na qual os afazeres digladiam-se na fila invisível e interminável das obrigações, simplesmente parar, olhar em volta e ouvir?

Quase ninguém sabe que a vida é aquilo que passa enquanto estamos muito ocupados para reparar. Ah, e como eu gosto dos reparadores! Gosto daqueles que cruzam os caminhos onde estão as histórias que eu quero contar e até aquelas que omito. Aproveito sempre as oportunidades de ditar o que vejo e o que passa por mim Sou, desde que os séculos são séculos, a presença mais silenciosa, sutil e cínica que se pode conhecer. Sou a detentora das melhores ideias e a quem recorrerem sempre quando as coisas não estão bem. Aí, nossas vozes se cruzam e, uníssonas, podem evidenciar um pouco desta velha, às vezes cinzenta, às vezes expressiva, sempre coberta de apelos e ideologias, mas sempre encantadora para quem observa. Os encantos jamais são perdidos com o passar dos anos.

Já contei que tenho apreço por aqueles que observam? E me observam? Mais do que apreço, tenho afeto. Contudo, estes são poucos. Os passantes são muitos... tantas pernas, rodas, bigodes, mas o desfrutar das cenas e das vivências sem ocupar somente o papel de coadjuvante é exercício somente de alguns: Gatos negros e pardos sobre os muros enquanto a lua, silenciosa e imperceptível, se exibe, os mendigos vestidos de cinza e de fuligem carregando velharias e poucas moedas, os bêbados, os poetas, cujas cabeças comportam o mundo, os que param diante das bancas de revistas, os que discutem a vida nas calçadas mal lavadas, os que ofertam moedas a algum músico distraído... Todos aqueles que olham em volta.

Já vi beijos tão cheios de amor e tão derradeiros! Vi despedidas sinceras, vi comentários cheios de maldade e malícia, traições, vi a escassez nas mãos dos que pedem, vi lágrimas que ninguém mais viu e até os últimos lamentos de quem desistiu de seguir tentando. Tudo o que é premeditado e acidental passa por mim, como passam os trens sobre os trilhos, como passam as músicas altas na madrugada, que silenciam ao primeiro raio de sol.

Dia desses, uma mulher passava falando sozinha (ou comigo), só não pude responder. Carregava consigo o corpo esguio e frio de seu cão de estimação, sua única companhia, para dar a ele destino junto a algum amontoado de lixos. Seu olhar abatido, flertava com os outros animais presentes, todos magros, famintos e flâneurs por natureza. Olhando pra mim, desistiu do abandono. Procurou o veterinário mais próximo para que a ajudasse a dar fim mais digno ao amigo. Foi recebida com um sorriso e, evidenciando as suas poucas condições, despediu-se do corpo inerte e em troca ganhou poucos gramas de ração. Sentou-se na calçada, com as roupas rotas nos varais como testemunhas e cercada pelos animais que já a aguardavam. O seu olhar perdido, me contemplava. Ela aguardava seu único amigo, como se hora dessas ele pudesse voltar depois de deambular o dia todo, como de costume. Limpou os restos do chão e se retirou sem rumo. Ela só não se deu conta de que a morte é o que há de mais nosso e é também minha companheira. Eu mesma morro daqui a pouco, ao cruzar a primeira esquina. Ela, mulher despetalada, um pouco depois.