UM MITO TAMBÉM CHORA

No ano de 1983, na cidade de Crateús-CE, eu conheci o Coronel José Othon Borges e fiquei impressionado com sua postura firme, inabalável para mim naquele momento. Eu era uma criança de origem muito pobre que tinha diversos sonhos, dentre eles, ser Soldado do Exército Brasileiro e estava frente a uma figura imponente e robusta, diante da qual eu me achava bastante pequeno. Aquela sena foi muito marcante, jamais pensei que o insigne Comandante me receberia com tanta elegância. A distância entre uma criança desprovida de necessidades essenciais e uma das mais altas autoridades da cidade é imensa.

Conheci o Coronel Borges quando fui trabalhar no “Programa assistencial de emergência contra a seca”, oportunidade em que ele comandava o 40º BI. O Senhor José Othon Borges era um homem forte sobre todos os aspectos, um líder militar, um oficial de infantaria enérgico, vibrador e sensato. Amado por uns e odiado por outros, foi duro e firme quando tinha que ser, mas também foi humilde quando a situação exigiu. Era um ser humano como outro qualquer. Isso eu vim compreender anos depois, com a experiência de vida, mas na primeira oportunidade em que o vi, ele passou a ser um mito para aquela criança que o contemplava deslumbrado.

Ao entrar em seu gabinete, a ele fui apresentado por um jogador de futebol. Eu e minha mãe entramos receosos na sala do Comandante e de lá saímos empregados no bolção da seca. Ainda hoje me impressiono com a memória daquele vigoroso aperto de mão. No mesmo ano nos reencontramos, na corrida da infantaria, organiza pelo quartel do exército que ele comandava. Fiquei motivado com as palavras de estímulo do comandante na abertura do evento, exibindo suas medalhas e falando de glórias vividas.

Naquele momento não era possível medir a força mental daquele oficial, mas sua força física era impressionante.

O tempo passou e aquela criança sonhadora, no ano de 1988, concretizou o desejo profundo de ser Soldado do quadragésimo Batalhão de Infantaria. No ano de 1989 realizei sonho ainda mais ousado, passei no concurso, a nível nacional, para sargento do exército. Realizei o curso de sargentos, na cidade de Três Corações-MG, fui classificado na cidade de Manaus-AM e a partir do ano de 1994, quando fui trabalhar no 23º BC, em Fortaleza-CE, como 3º sargento, vi algumas vezes aquele que se tornara um mito para aquela criança humilde que acalentara a aspiração de ser militar de carreira do Exército Brasileiro. Em 1994 eu era bem jovem e muito tímido, jamais tive coragem de falar para o Coronel Borges daqueles episódios e da minha admiração, por razões bem simples.

Quando muito criança, bastante pobre, sem nenhuma experiência de vida, quando o maior sonho era apenas um prato de comida, quando a única certeza era a desilusão, quando desde pequenino tinha que trabalhar para ajudar no orçamento familiar, quando o mundo era uma bila, uma bola de meia, um pião, um pedaço de pão, o incipiente passa a ter complexo de inferioridade e passa a achar que os outros lhe são superiores. Chega-se a pensar que algumas pessoas seriam até imortais, que homens não choram. Que uns são privilegiados pela mãe natureza, providos de poderes especiais.

Quando você cria um pouquinho de tutano, fica taludinho, você aprende que os seres humanos não são tão diferentes assim, você aprende que a vida é uma linha de montagem e que nela somos jogados sem termos pedido. Desta linha de montagem saímos todos com muitas características idênticas, mas isso só se percebe depois com a vivência. A fisiologia é igual para todos. Não tem quem não use o bojo, hodiernamente conhecido como vaso sanitário. Não tem quem não chore quando a mulher amada vai embora, não tem quem não chore a perda de um ente querido, não tem quem não sinta dor, não tem quem nunca amou, não tem quem não passe mal, não tem quem não sinta desarranjo intestinal, não tem quem não peque, não tem quem não condene e não tem quem não seja condenado. Não tem quem não tenha fome. Tem quem não tem comida, quem não tem afeto, quem não tem carrinho, quem anda sozinho a procura de alguém, tem quem não tem nenhum vintém.

É muito esquisita a queda de um mito. Digo isso no sentido de que eu descobri que todos somos iguais, apesar de todas as diferenças. Ninguém recebe poderes especiais da mãe natureza, somos seres humanos que erramos e acertamos, temos virtudes e defeitos, erros e acertos. Aprendi que fui criado com o preconceito de que homem não chora. Aquele homem que o vi como um titânio, também o vi num momento de dor profunda. Mas para aquela criança que muitas vezes não tinha esperança, ele continuará sendo um mito.

Na cadeira de rodas, guiada por um filho, dando entrada no Hospital Militar de Fortaleza, com a mesma postura marcial de sempre, com a autoridade de um lorde e a humildade de uma criança, sem o vigor de outrora, quebrando o mito de que homem não chora, apertou-me a mão, falou do passado de glória, abriu seu coração e sua mente, chorou copiosamente. Alguns dias depois, li em um jornal de grande circulação no Estado do Ceará, a seguinte notícia: morre de ... aos ... anos, o Coronel José Othon Borges.

Alber Liberato Escritor
Enviado por Alber Liberato Escritor em 25/12/2021
Reeditado em 25/12/2021
Código do texto: T7414831
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