Antes de Clarice se suicidar ela fez um pedido… Como quem atira uma moeda num poço só que atirando a si mesma. Eu sabia que tinha estragado tudo. O penhasco parecia um ímã que a puxava mais e mais dando passos curtos, um pouco indecisa. – “Pense em nosso começo…” – Eu disse, com uma voz trêmula, mentirosa… – “Tivemos um incrível começo!”. Ela me olhou nos olhos, com tamanho ódio, que me ajoelhei no chão em prantos… as duas mãos esticadas tateando o vento. E foi naquele segundo; pouco antes de abraçar a queda, que Clarice me amaldiçoou. – VOCÊ VIVA ENTÃO… ESTE INCRÍVEL COMEÇO… – Seu corpo desapareceu na neblina. Hoje, agora, um grande dia me aguarda… só que é o mesmo dia já há vários dias… Sento-me em frente a máquina de escrever com uma ideia magnífica de um romance. Tenho certeza de que será a MELHOR história que já fiz… Mas tudo que consigo, são os dois primeiros capítulos. – “Não foi um sonho… Todas as vezes foram reais. Vai acontecer de novo…” – Me desespero… saio de casa correndo… Cabulei o trabalho no jornal. Nem vão sentir minha falta, sou apenas um cara que escreve críticas sobre peças em cartaz e hoje é quarta-feira… não existem peças em cartaz. Fazer Clarice (in)feliz parecia ser minha imensa ocupação, era uma coisa que eu era realmente fazia direito… direto… o tempo inteiro. Depois de correr por aí, tento procurar um lugar diferente pra passar a tarde… Mas sempre me esbarro naquele bordel. Ele muda de lugares, me procura e me acha. Lá eu conheço Eddy. Ela é uma prostituta com tinta vermelha nos cabelos e apesar de já ter olhos bem claros e lindos… usa lentes de contato azuis. Sempre que chego – pra conhecê-la outra vez – … pergunto por que ela prefere o azul de mentira ao castanho e ela me responde da mesma maneira:“Aqui a gente é atriz… a gente atua, que-ri-do.”. – … me puxa, me levando prum quarto fedido, mofado com uma cama redonda e velha, mas muito bem forrada por ela. Ao lado da cama um criado-mudo com uma gaveta e algumas moedas. Sempre que terminamos ela não se levanta apressada já querendo ser paga, pensando em ficar limpa prum novo cliente… Eddy permanece deitada comigo, me olhando quase sem piscar. Ela sorri… Eu estou ofegante, confuso… Aquela confusão de quem está esquecendo de um velho amor (que foi ontem) e colocando um novo, bem ali no lugar vazio. “É puta… E daí? Ontem eu era um canalha.” – Você tem sempre esse olhar… Parece que já me conhece! – Ela diz. E então eu conto minha história… ela pensa que estou brincando e gargalha e eu a acho perfeita… acaricio seu queixo. – Olha que com CARINHO, vai sair mais caro, viu… – Ela brinca. – Em meu pensamento a voz de Clarice me invade… Insana, debochada… cheia de eco por todos os lados… “Amanhã começa tudo de novo… o seu INCRÍVEL COMEÇO…”. Meus pelos eriçam. Fico inquieto e Eddy me olha meio desconfiada, mas sorrindo. Ela precisa atender outro cliente e eu ainda fico alguns minutos circulando pelo bordel. Ela dança no colo de um homem, tirando a parte de cima da roupa, esfregando os seios em sua cara. Solta uma gargalha, olhando pra ele e depois virando pra mim com um ar de: “Olhe esse idiota, eu mereço esse cara?”. Me levanto dando risada e fazendo sinal com o copo de uísque, brindando. Não sinto ciúme… amanhã é um novo dia. O mesmo dia. Ela estará lá. Saio pela rua andando sem rumo, aguardando a chegada da última hora. Resta-me apenas andar e andar. E então desperto novamente, bem no dia seguinte após a morte de minha Clarice… a quem fiz tanto sofrer. Ela chegará me dando grandes novas ideias. E este grande novíssimo amor… Só pra poder me dizer o que pensa realmente, deste “grande início das coisas”.

 

 

 

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 20/12/2021
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