A flor e o fuzil

A cidade enfeitara-se à espera de seus heróis. Os preparativos começaram cedo. No meio da manhã já se ouviam os primeiros acordes da banda municipal. Os soldados chegariam à meia tarde. O coreto da praça central, de pintura nova, foi todo ornamentado, ali as autoridades estariam à espera da tropa. Várias as atividades previstas. Hinos e discursos, como de praxe. Desfile pelas ruas centrais. No quartel, à noite, churrasco, comilança e beberagem, para o grosso da tropa. No clube do comércio, jantar e baile, para a nata da sociedade e os oficiais.

Entre as atividades, na chegada da tropa em frente ao coreto, moças da cidade colocariam flores nos canos dos fuzis dos soldados. Seriam algumas moças, ato simbólico, com a participação de oficiais e suboficiais na homenagem, também adredemente escolhidos. Entre as mocinhas, Eponina. Nina voltara da capital há pouco tempo, depois de quatro anos de estudos por lá. Estava para completar dezoito anos, astuta e bonita, um jovem fanal, que, assim, angariava afetos e invejas. Filha do delegado de polícia, este, pai e marido afetuoso, policial austero e justo. Formação positivista. Família da fronteira, Quaraí ou Itaqui, estava na cidade há dez anos. Anos duros, de tensões e refregas, revoluções e permanências. Um delegado tinha o que fazer, e este, além de tudo, parecia ter cartaz na capital. Nina era filha única, de sorte, o mimo e o zelo do pai e da mãe.

A cerimônia do fuzil e da flor foi rápida. Não mais que dez militares perfilados, à frente de não mais de dez mocinhas, perfiladas com suas rosas brancas. Nina, em verdade, atendia pedido do pai, não fazia muita questão de estar ali, nem ao menos se concentrou. O signo daquelas cerimônias a incomodava. Mas lá estava, e diante dela, o tenente Garibaldo, ainda jovem, fizera vinte e cinco anos durante aquela campanha militar, orgulhoso e garboso, com seu fuzil em riste. Apenas Garibaldo notou o pouco caso de Nina com tudo aquilo, e até achou que ela estava ali a contragosto, mas guardou a impressão. E, em que pese o comportamento de Nina, nos olhos oblíquos da moça, Garibaldo viu correr o fiapo de um relâmpago acastanhado, fino e cortante, mínimo raio. Pouca coisa, nem mesmo dirigido a ele, mas capaz de provocar um breve fremir na boca do estômago. Nina deixou a flor, virou-se e se foi. Não com as demais, sozinha. Garibaldo acompanhou, até onde avistou, Nina e seu cabelo negro solto ao vento.

À noite, tudo ocorreu como previsto. Festas, ambas, de alegria e paz. Nem a cachaça, a grassar livre no quartel e na bailanta, que se seguiu, nem os excessos de champanhe no clube, conseguiram comprometer a paz daqueles espíritos. Embora alguns mais exaltados, e molhados, sempre apareçam, estavam todos de boa-fé naquele dia.

Nina, ninguém viu. Não foi ao clube, onde a elite municipal, efusiva, confraternizava. Ficou em casa, estava em meio ao Germinal, do Zola.

vila
Enviado por vila em 20/12/2021
Reeditado em 23/09/2024
Código do texto: T7411162
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