LIBERTO
Após o descanso do meio-dia, sentei-me no sofá vermelho para dar continuidade na leitura do meu livro favorito, A República. Estava no livro sete, onde Platão apresenta a nós leitores, o tão badalado e discutido nos círculos acadêmicos e filosóficos, o Mito da Caverna. A cada frase lida, me questionava até onde vai a nossa cegueira enquanto preconceituosos que somos em não aceitar o diferente. Vivermos acorrentados em conceitos/preconceitos o que, nos impedem um conhecimento mais amplo da vida, nosso crescimento espiritual e intelectual. Enquanto nos sentirmos dentro da caverna, ela será a nossa verdade, o nosso mundinho. O que conseguimos enxergar na escuridão? Somente sombras, vultos, uma tela sem cor. A luz traz para nós vida, energia, mostra o que realmente somos e vimos sem rodeios.
Passados algumas horas me aproximo da janela para ver o mundo lá fora, percebia o vai e vem das pessoas, os automóveis com suas buzinas ensurdecedoras, os motoristas xingando não sei quem, imagino uma pobre mãe ou esposa sendo lembradas em momentos impróprios. Desço os quatro conjuntos de escadas do meu prédio construído no século passado, abro a porta principal e saio a caminhar pelas vias arborizadas do meu bairro. Os questionamentos de Platão me acompanham durante todo o trajeto. Vez ou outra respondia ao aceno de um transeunte, ao sorriso de uma criança, mas também percebia olhares tristonhos de um ancião sentado no chão em busca de seu quinhão.
Em certo momento senti-me fatigado, meus passos ficaram descompassados, sentei-me num banco sob uma frondosa figueira e lá fiquei a descansar. Após alguns instantes, imagino eu, nada mais do que trinta minutos via algumas senhoras e senhores todos ao meu redor conversando comigo, me apalpando, no entanto não ouvia e nada entendia o que estava acontecendo. Olhando para o lado esquerdo, vejo aquela que fora o grande amor da minha vida num choro convulsivo, me acariciando, me beijando e eu sem nada entender respondia o quanto também a amava. Ela não me ouvia. Lembrei-me de momentos antes de sair a caminhar, mandara uma mensagem no meu celular dizendo estar em casa dentro de cinquenta minutos, tempo para fazer a minha caminhada. Disse que me preparasse, pois teria uma bela surpresa para mim. Ah! esta mulher, sempre me surpreendendo. Qual seria a surpresa desta vez? A última fora um lindo jantar a luz de velas no aniversário do nosso casamento. Seria uma nova lingerie para apimentar o nosso relacionamento, pensava com meus botões entre risos e desejos.
Relembrando este passado recente me vêm a mente as lembranças dos belos momentos que tivemos juntos, onde em longas noites de verão saíamos a caminhar pela praia namorando a lua, e nós cada vez mais apaixonados. Os saraus, onde músicas e poesias se faziam presentes em fins de tardes maravilhosas. Uma rodada de chope com nossos amigos, uma viagem permeada de aventuras, um cineminha a dois como eternos adolescentes. Percebo que ela sente a minha presença, porém não estamos prontos o suficiente para uma aproximação mais contundente. Ela sofre com a minha ausência, eu procuro me aprimorar para que no momento certo possamos nos comunicar, enquanto isto o tempo vai passando para ela, e eu aqui onde estou, o tempo é contado diferentemente deste planeta azul.
Esta luz que a princípio ofuscou meus olhos me fez liberto das sombras existentes em meu interior. Sinto-me livre das amarras que me mantiveram na ignorância, na estupidez, na insensatez. Podem me julgar de louco, mas existem vários caminhos que nos levam ao conhecimento e construção da nossa verdade, a razão. Luz, bendita luz que ofuscara meus cegos olhos e hoje me ilumina por inteiro, me divorciando desta caverna sombria e fria. Hoje eu a vi, aliás estive junto dela, com seu sorriso maroto relembrava momentos maravilhosos que passamos juntos. Um beijo ardente na foto de nós dois que ainda mantém sobre o criado mudo, um passar de olhos no closet onde guardava minhas roupas, uma dedilhada no velho violão a lembrava das canções que fizera em sua homenagem, e eu ao seu lado tentando lembrá-la de que chegara a hora dela escrever uma nova história na sua vida. Nossas vidas se entrelaçaram pelo tempo que fora necessário, pois deveriam ficar a partir de agora como belas e agradáveis lembranças. Me parece que ela entendera, horas depois recebe um telefonema de um velho amigo que perdera sua companheira num trabalho de parto, aceitando o convite para um jantar “de amigos” apenas...
Valmir Vilmar de Sousa (Vevê) 05/12/21