Temporada na fazenda
Risos e gritos ecoam pelo ar seco e sob o sol escaldante enquanto o vento empurra os cabelos para o alto e pressiona as bochechas num formato esquisito, tanto maior quanto maior é a velocidade do velho caminhão de aluguel. Todos gritam quando o caminhão balança perigosamente ao passar pelos buracos da estrada de terra, em péssimo estado de conservação. Os gritos mais alegres e ensurdecedores acontecem quando a carroceria se aproxima dos galhos das árvores, obrigando todos a se abaixarem sob o risco iminente de serem atingidos. Na maior parte das vezes, no entanto, o transporte era feito a cavalo e a pé.
A chegada na fazenda era sempre uma festa. Todos correm de um lado para outro e se organizam em grupos de conversas com os que lá estão. Em tamboretes de madeira ou no chão de terra batida da cozinha, sentam-se para conversar, saber das novidades, degustar cocadas de leite, ambrosia e tomar café caldeado, que consta da torrefação dos grãos em fogão de lenha, seguido da mistura com calda de açúcar. O processo de cozimento do café emite um cheiro delicioso que se espalha por toda a casa, resultando num caldo maravilhoso, sempre sorvido com um prazer inenarrável.
Era visível o passado glorioso da fazenda. A casa grande mantinha certo ar de dignidade, apesar do péssimo estado de conservação, onde se viam rebocos caídos, telhas quebradas, madeiramento irregular e ausência de qualquer vestígio de pintura nas paredes. Ao atravessar o portal de entrada, depara-se com uma sala muito grande, com uma mesa imensa e robusta, rodeada de gavetas cheias de arreios de cavalo em lugar das louças e talheres do passado. Não há cadeiras nem bancos ladeando-a. Uma segunda sala, contígua à primeira e um pouco menor, é ocupada pela mesa onde se fazem as refeições, esta sim ladeada por dois bancos enormes, sem encosto, com duas cadeiras nas extremidades. Ao redor das salas, ficam os quartos e, ao fundo, a cozinha de chão batido, com um fogão de lenha no canto e uma prateleira improvisada onde se guardam panelas de barro, pratos e canecas esmaltadas brancas corroídas com manchas pretas nas bordas, além de algumas poucas louças e talheres.
Ao lado direito da porta, logo na entrada, havia uma sala quase sempre fechada à chave, que aguçava a curiosidade da criançada. Ao ter acesso, deparava-se com um belo e rústico armário embutido na parede, com portas tipo igreja, onde eram guardados os doces preparados para receber os visitantes. O doce de umbu, elogiado pelo sabor e ponto de corte, era ansiado por todos. O grande tesouro do quarto, no entanto, era um nicho prateado, protegido por paredes de vidro, com Santa Terezinha ao centro, vestida de branco, com uma coroa dourada na cabeça e um manto azul sobre as costas, carregando o menino Jesus nos braços. Do alto de uma pilha de pedras transparentes e brilhantes, imitando cristais, Santa Terezinha observava com candura os raros visitantes que tinham o privilégio de vê-la e de rezar sob seus pés. O nicho exercia um efeito magnético sobre as crianças, que não paravam de admirá-lo.
Ocupando lugar de destaque na cozinha, dois imensos potes eram destinados a armazenar água para beber, quase sempre barrenta, apesar do esforço em se coar. Diariamente, pela manhã e à tardinha, as mulheres tinham como rotina se dirigir ao “tanque de beber” para transportar a água que seria consumida. Em fila, com potes de barro apoiados em rodilhas feitas com pedaços de pano velho, as mulheres seguiam com um gingado próprio, desafiando a força da gravidade. Impressionava a habilidade com que os potes eram transportados, pois jamais caíam, mesmo quando se corria da ameaça de algum boi extraviado de boiadas alheias que cruzavam a fazenda.
Ao chegar ao tanque, as mulheres se posicionavam de cócoras e, com a saia presa entre as pernas, movimentavam a superfície da água com uma cuia de cabaça, de um lado para outro, em um movimento sincronizado, para só depois coletar a água que seria despejada no pote. Acreditavam que essa ação seria capaz de retirar os resíduos e melhorar a qualidade, deixando-a menos barrenta e mais limpa. Além do “tanque de beber”, existia outro tanque, chamado “tanque do gado”, o qual era utilizado para banho e lazer dos moradores e visitantes, e para uso do gado e dos equinos (cavalos, burros e jegues), seja para beber água ou para banhá-los no caso dos cavalos, pois jegues e burros eram claramente discriminados. À tardinha, o tanque era utilizado para banho; primeiro as mulheres seguiam em bandos com suas toalhas nos ombros, roupas limpas e sabonetes, e logo depois os homens.
A noite chegava, a animação diminuía aos poucos com a escuridão, e o clima soturno tomava conta dos cômodos da casa. Os fifós (pequenos lampiões de lata reciclada) criavam um clima lúgubre que, além de liberar um forte cheiro de querosene, soltavam muita fumaça escura que borrava de preto o telhado e as paredes. A vontade de fazer xixi à noite era um suplício à parte, pois não havia banheiros na casa e o mato era a única opção para fazer as necessidades. Pela madrugada, o vai e vem das vacas no curral despertava todos para o ritual da bebida do leite tirado direto do peito da vaca e, um pouco mais tarde, o escaldado com farinha de mandioca em leite fervente, dejejum favorito, que era servido acompanhado de ovo de galinha de capoeira frito em gordura de porco com pedaços de torresmo. Antes, porém, era obrigatória a ida até o pé de juazeiro próximo à casa para a coleta de folhas que seriam utilizadas na escovação dos dentes.
Ao final da temporada, a alegria da chegada era substituída por muita tristeza e saudade antecipada. As rodas de conversa diminuíam, assim como as risadas. Ao subir no velho caminhão para o retorno não almejado, o pensamento era se haveria uma nova temporada, pois a cidade, sempre ela, poderia se tornar mais atraente.