Luíza e Mel – Uma história de amor.
Luíza, uma mulher por volta dos trinta anos, tem um sonho desde criança: ter uma filhinha, uma menininha sonhada e previamente amada.
Era casada com Giba, poucos anos mais velho. Formavam um casal feliz e realizado.
Artista plástica, optou por dar aulas e transmitir seus conhecimentos.
Tinha uma escola de artes e arquitetura. Contratara a irmã mais velha, arquiteta aposentada, para a parte administrativa e de formação de profissionais na área de decoração de ambientes.
Quanto a ela, ministrava as aulas de artes plásticas.
Altura mediana, magra e aparentemente frágil, Luíza não se achava uma mulher bonita, contudo observava que despertava olhares masculinos por onde andasse, incluindo os de seus alunos.
Ela não tinha consciência da força do seu olhar de um verde faiscante, que facilmente penetrava na alma de qualquer pessoa. O que era curioso, pois os artistas são antes de tudo bons observadores.
Agora, ao despertar com o relógio de cabeceira, abre os olhos sonolenta e olha com carinho para o marido.
Giba também acordou e apenas sorri, aquele sorriso de menino de que ela tanto gosta.
Seu marido é professor de matemática e músico amador.
Giba é mais tímido e quieto, contudo, quando em contato com seus alunos, transmuta-se e exibe com brilhantismo o entusiasmo capaz de animar a meninada e por momentos fazê-los esquecer os computadores e celulares.
Ela espreguiça com vontade e estende a mão.
- Que foi, meu bem? – pergunta o marido.
- Dá tempo... de...vamos transar?
- Mas temos que trabalhar, o despertador tocou.
- Ei, psiu – diz ela, fazendo beicinho com os lábios carnudos –, coloquei para despertar mais cedo.
- Hummmm, a minha mulher está mal intencionada? Quer me seduzir?
- Vamos agir? – retruca Luíza arrancando a camisola e começando a roçar os seios no peito de Giba, enquanto com rapidez e desejo ajuda-o a despir-se também.
É nos jogos de braços e pernas, laços e entrelaços, beijos e línguas, o balançar rítmico dos quadris no encaixe perfeito, que o amor se faz mais uma vez, estranhamente mais arrebatador depois de tantos anos de casamento.
Ao final, suados e ofegantes, afastam-se e ficam de mãos dadas olhando o teto, quase em transe.
Giba é o primeiro a se recompor:
- Amor, que foi ISTO?
Luíza dá uma gargalhada gostosa e responde:
- Daqui a nove meses a Mel vai chegar.
- Mas que Mel, Luíza? Que história estranha é esta?
Ela apoia-se no cotovelo e olha nos olhos do marido:
- Nossa filhinha, meu amor, tinha que ser hoje.
- Ah, fala sério que você acredita nesta história? Andou medindo a temperatura, aquelas bobagens?
- Aham.
- Ah, Luíza, para com isto, como vamos ter uma filha neste momento?
- Já está tudo planejado, preparei duas alunas para ficar no meu lugar na escola. Uma vez por semana irei lá diariamente para supervisionar o trabalho e ambas poderão vir aqui em casa sempre que precisarem, em caso de alguma dúvida, ou se for na corrida a gente fala por vídeo mesmo.
A mulher feliz toma fôlego, e olha de novo para o seu amor:
- Meu bem, depois da gravidez vou parar de trabalhar por muito tempo, pelo menos nos primeiros anos da Mel.
Neste ponto Giba fica furioso e levanta rapidamente da cama e vai para o banho.
Luíza corre atrás:
- Que houve, por que está brabo?
- Mais tarde falamos – diz ele já no box. – Vou tomar o café, está na hora de trabalhar.
A mulher encaminha-se para a cozinha e começa a preparar o café para os dois.
Na sua escola de artes as aulas começam mais tarde, portanto a arrumação do café é com ela, enquanto as outras tarefas da casa são divididas.
De shortinho e camiseta movimenta-se pela cozinha com desenvoltura e em pouco tempo o cheirinho de café passado se espalha pela casa e uma mesa apetitosa com frutas e cereais está pronta.
O suco de laranja do Giba bem ao gosto, puro e sem açúcar, ela dispensa suco nesse horário. Um leite gelado com achocolatado, mamão e torradas são suficientes.
O café transcorre em silêncio. Ela nem levanta o olhar da refeição, pois conhece bem o marido e sabe que agora não adianta falar nada.
Giba, em silêncio, não perdoa ser avisado assim depois de tudo decidido. Claro que planejaram filhos, mas ela fez tudo sem consulta-lo, poxa, sentia-se usado.
- Até a noite – diz ele secamente, antes de sair batendo a porta, sem esperar resposta.
Luíza fita a porta em silêncio, lágrimas silenciosas correm pelo seu rosto. Não esperava uma reação tão forte, só quis fazer uma surpresa, afinal filhos era um projeto.
A conversa entre os dois aconteceu, Giba entendeu e a vida continuou como deveria ser.
Amanheceres e anoiteceres, alguns mais bonitos, outros nem tanto, e o tempo passou...
Quase nove meses depois, era uma quarta-feira, os dois lembrariam sempre...
No dia anterior, Luíza tinha ido dormir meio enjoada, com o barrigão incomodando um pouco.
Agora, acorda e olha para o lado e percebe que Giba já levantou. Ainda sonolenta, levanta da cama quando percebe o líquido que começa a escorrer entre as pernas.
Não sabe se pode se mexer muito, então grita pelo marido:
- Giba, vem me ajudar rápido!
Giba que estava preparando o café, corre para o quarto, pois ambos já esperam o bebê para qualquer hora.
Ao ver a sua mulherzinha querida parada no meio do quarto, os imensos olhos arregalados, sabe que tem que manter a calma.
- Ok, meu bem, tudo certo, a mala já está pronta, vou ligar para o médico e vamos para o hospital.
- Obrigada querido – responde Luíza, mais calma.
Apesar das tentativas de manter o controle, Giba treme e gagueja, carrega a mala desajeitado e a coloca no carro.
Na sequência vem buscar a esposa, que já está arrumada com o primeiro vestido que encontrou à mão, também bastante ansiosa.
Tudo acontece como deveria ser, conforme o roteiro de Luíza, e nasce uma linda menina.
Os primeiros tempos são nervosos para a família, os pais levantando de noite e colocando a mão no narizinho do bebê para certificaram-se que ela respira.
Contudo, como estava escrito, Mel se desenvolve e envolve.
Luíza está apaixonada, a vida tem mais sentido, as cores demoram-se na paleta e escorrem nos papéis variados como se música fossem.
É o seu amor respirando o mesmo ar que ela, é o seu mais doce pedaço, parte de si imortal, certeza de vida eterna...
Aos três anos Mel já tem os cabelos quase pretos como os do pai, longos, sedosos e cacheados.
Os imensos olhos escuros são penetrantes como os da mãe.
Alta e magra, tem a pele branca como Luíza.
Neste momento, sentada no chão da sala, com os brinquedos espalhados pelo chão, a mãe observa a filha brincando, muito séria.
Com um frio na barriga, Luíza observa todas as bonecas decepadas.
Anda discutindo com Giba porque discordam, ele quer levar a menina a um médico psiquiatra e ela não concorda.
Vai passar, é só o que costuma dizer nestes momentos.
Cansado, ele sacode os ombros e vai assistir televisão.
Pouco falam. Ele evita a menina que não presta mesmo atenção em sua presença, e às vezes, com muito receio, percebe que tem medo daquele olhar estranho, frio, indiferente.
Com Luíza é diferente, a menina interage, abraça, beija.
Giba foi excluído da vida de suas mulheres e não sabe como agir.
E o tempo passa, o tempo é indiferente aos dramas familiares...
Quando Mel completa cinco anos, Giba vem ao aniversário, pois já estão separados.
Luíza não é a mesma, tornou-se uma mulher pálida e de semblante sempre preocupada, em alerta.
Neste meio tempo, teve que doar todos os animaizinhos domésticos que tentou trazer para casa. Todos os pediatras e psicólogos diziam que os pets seriam bons companheiros para crianças com problemas. Contudo, se não fosse a sua vigilância constante, todos os bichinhos teriam sido mortos pela menina. A essa altura, até ela começa a admitir que Mel possa ter algum problema.
São momentos em que ela chora, desamparada, sem saída e só.
Giba aparece de vez em quando, nunca deixou de prover a casa e ainda ama sua mulher, mas por sua própria saúde mental foi obrigado a sair.
No aniversário sem crianças nem convidados, ela e o marido ensaiam um sorriso pálido.
Mel, indiferente, brinca com os brinquedos destruídos e desenhos que ela espalha pelas paredes, tosca tentativa de tentar imitar sua mãe...
Ninguém come nada, com exceção de Mel que se lambuza com os brigadeiros e na hora do parabéns, agita-se e joga o bolo no pai.
Arrasado, Giba sai porta afora, nem sabe onde ir nem como agir, está cansado. São os momentos em que ele odeia a filha, para logo se arrepender. Seja lá qual o problema de Mel, ela é sua filha e ele a ama apesar de tudo.
Enquanto isto, na casa, sem dizer uma palavra, Luíza abraça a filha:
- Calma, meu bem, está tudo bem, mamãe te ama e sempre vai te amar.
Abraça o corpinho frágil e lágrimas quentes caem sobre as costas e o vestidinho novo da filhinha.
Na sequência, ergue-se e toma a filha pela mão:
- Vamos dormir porque já estamos cansadas.
- Vamos mamãe, diz Mel com a voz estranhamente doce. Será que o afastamento do pai fora por alguma manobra ou manipulação? A mulher repudia tal pensamento, contudo ele continua em sua mente, juntamente com tantos outros questionamentos sem resposta.
Finalmente, Luíza sacode a cabeça numa negativa muda e relutante, por hoje não vai mais pensar no assunto, não aguenta mais tanta pressão.
Deixa que a menina deite em sua cama excepcionalmente, não sabe porque sente a necessidade de protege-la, contudo a sensação de cumplicidade é assustadora, pois sabe que algo está muito errado no comportamento de sua filha.
De novo decide só pensar no assunto no outro dia e finalmente consegue adormecer.
No dia seguinte, estranhamente, depois de uma noite de sono pesado, talvez resultado do estresse sentido, Luíza acorda com a resolução de chamar Giba para falarem sobre sua filha.
Após o café compartilhado com Mel, ela liga para o marido que ainda não saiu e pede que venha na saída da escola para conversarem sobre a menina.
Sente-se aliviada e de certa forma acha que está fazendo a coisa certa, só espera não ter demorado muito para tomar uma decisão.
Nem sabe o motivo, mas toma um banho especial e coloca um vestidinho novo para esperar o marido. Sente-se como no início do namoro, mas consciente que tudo mudou, e que agora talvez consigam recuperar suas vidas. É o que mais deseja.
No horário que ela ainda lembra bem, Giba entra, pois tem cópia da chave para alguma emergência.
Sorridente depois de tanto tempo, traz flores nas mãos.
Luíza corre e se dependura no pescoço do marido. As lágrimas escorrem, pois tê-lo ao seu lado para ajudar neste grave momento é um alívio.
- Calma, meu bem, vamos conversar no ateliê, diz Giba, puxando a esposa pela mão.
Mel está no chão riscando tudo com as tintas da mãe e ignora a presença paterna.
Já no ateliê, não precisam de muita conversa para concluir o que ambos já sabiam, teriam que levar Mel a um psiquiatra urgente.
Nervoso, caminhando de um lado para o outro, depois da conversa, ele diz:
- Então fica tudo combinado, amanhã eu procuro um especialista pediátrico e marco uma consulta. Deixa tudo comigo porque você já está no seu limite, esta parte cuido eu.
Luíza assente em silêncio, realmente não conseguiria dar conta de tudo depois do que teve que suportar.
No outro dia, Giba liga e diz que está tudo resolvido, consulta marcada para dali a duas semanas.
Seguem-se uma série de consultas e exames com neurologistas, até que finalmente ambos comparecem ao consultório para ouvir o diagnóstico final.
Depois de breve espera, o médico chega à porta do consultório e chama o casal.
Nervosos, eles entram e ouvem aquelas palavras estranhas ditas por um estranho sobre a filhinha deles.
No seu limite, Luíza pede licença e sai antes do diagnóstico final, não suporta mais e prefere aguardar na sala de espera.
Finalmente, muito pálido e abatido, Giba também sai do consultório.
Olham-se em silêncio, e antes que Giba abra a boca, Luiza interrompe:
- Meu bem, outra hora você me diz o resultado, no momento só quero saber se tem tratamento.
- Luíza, claro que sim, ele disse que no caso dela fomos a tempo e está disposto a trata-la pessoalmente, ficou bem interessado no caso.
- Poderia ter sido pior?
Giba baixa a cabeça, lágrimas escorrem pelo rosto quando responde:
- Sim, mas ela foi salva pelo teu amor, minha querida!
Nada mais a dizer, comovido, Giba abraça a esposa, ambos ainda na sala de espera do consultório, e choram.
Caminham para a saída de mãos dadas.
Já na rua, percebem que iniciou uma chuvinha leve, mas não ligam e continuam caminhando lentamente.
Molhados, enamorados e esperançosos, sabem que existe um futuro a ser conquistado e estão dispostos a tudo para conseguir o êxito.
Estão felizes e de volta para casa onde Mel espera os pais.
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Jeanne Geyer.
Inspiração para o conto:
“Eu era amado, e isso me protegeu”. James Fallon Neurocientista que ao estudar o cérebro de psicopatas, descobriu ser um deles, e divulgou sua descoberta. Casado, amava a esposa e foi criado com muito amor.