Estranha Fixação

Marta hoje está com 62 anos, aposentada, separada, fazendo trabalho voluntário como catequista de crianças em uma cidade de porte médio. Foram quarenta anos de casamento com Léo. Quarenta infelizes anos em termos afetivos. Nunca o amou. Casou-se com ele aos dezessete anos por estar grávida do primeiro filho. Seu amor de verdade, na época, a tinha deixado e ela caiu nas mãos do Léo como peixe cai na rede do pescador. A sua vida sempre fora tensa, sem muitos planos, sem muitos ganhos, sem muitos enganos. Acordava para viver aquele dia. Não ousava pensar no próximo.

Por necessidade, quando já tinha 30 anos, estudou muito e passou em um concurso público. Virou bancária, profissão totalmente diversa do que ela sempre desejou. Queria trabalhar com teatro. Sempre fora, na infância e adolescência, de uma criatividade ímpar. Encabeçava os festivais de valores da escola e incorporava personagens diversos para as atividades em geral. Essa aptidão ela foi perdendo aos poucos, pois os filhos foram se empilhando nos anos, sobrando quase nada de tempo para pensar na arte.

Lá pelos quarenta anos começou a frequentar a igreja do bairro. Participava das missas com regularidade e, aos poucos, como também tinha o dom da voz, passou a cantar. E como cantava … e como para cantar ela encontrava tempo.

Com os filhos já crescidos começou a estudar a bíblia, depois a vida dos santos e assim nunca mais parou. Sagrou-se “Filha de Maria” aos cinquenta anos e as suas tardes passaram a ser ocupadas por Grupos de Oração em todos os cantos possíveis.

Na sua casa, um altar foi exageradamente adornado com todos os santos que se tem conhecimento. De amizade ladeava-se com as beatas da igreja e as que pretendiam fugir das suas vidas e entregar-se ao mundo das rezas. Tudo era absurdamente exagerado com elas. Aos poucos seus filhos foram afastando-se, exceto o primeiro, que comungava do mesmo caminho.

Com os filhos afastados não aguentou o marido e, depois de tanto tempo alegou precisar de mais tempo para entregar a sua vida à Deus. Colocou Léo porta afora, intensificando as suas pregações.

Sem mais qualquer vaidade alardeava aos quatro cantos que era preciso ser solidário, fazer caridade e rezar, rezar muito … e assim fazia. Não bastavam as missas, os Grupos de Oração, as peregrinações pelas casas … era preciso acordar e deitar rezando.

Foi aconselhada a buscar apoio psicológico, pois estava perdendo tudo à sua volta pelo fanatismo … mas relutou e seguiu.

De dois anos para cá começou a ser vista na casa do Hilário, um ex padre que ousara deixar a batina para viver a sua vida mais livre. Segundo fofocas na cidade, muitas noites ela passava por lá. Alguns questionavam: rezando? As fofocas aumentaram a tal ponto de chegarem aos ouvidos de Marta.

Quando soube ela não retrucou, não defendeu-se. Deixou-se lavar por bons fluídos, como estava naquele dia com os cabelos no leito de um lavatório moderníssimo, no melhor salão de beleza da cidade.

04/11/2021

Exercício Clube da Prosa - Pragmatha Editora

Rosalva
Enviado por Rosalva em 10/11/2021
Reeditado em 16/11/2021
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