Pequenas histórias 249
Procurava um tema
Procurava um tema. Já não tinha mais a comoção de antigamente. Alojou-se no intimo uma passividade aderente obrigando-o a permanecer inativo parado no tempo ingrato. Levantou. Pegou uma cerveja. Desde que passou a morar sozinho evitava sujar copos, pratos... Detestava lavar louça, limpar a gordura. Por isso bebia a cerveja direta da garrafa. Parecia mais gostosa. Debruçou-se sobre a janela. Apesar de serem sete horas da manhã, o calor parecia ser um calor de quatro horas da tarde. Passou a garrafa gelada pelo rosto descendo para o peito nu. O suor empapava a barba por fazer. Achava-se romântico, isto é, a cena parecia romântica: estava, com o ombro apoiado no umbral da janela, deixando a cerveja escorrer pelo queixo molhando o peito. Lembrou-se de Leo. Será que se eu me jogar daqui cairei em cima de alguém? Talvez sim talvez não. Além do que ele não era Leo. Ele é o Jose Val. Nisso a campainha interrompeu seus pensamentos.
- Olá.
- Oi.
- Soube?
- Sim, fiquei sabendo.
- Leo morreu.
- Aos meus amigos.
- Maria Adelaide do Amaral.
- Está lendo?
- Sim, comecei hoje.
- Muito bom.
- Assistiu a minissérie?
- Não, você sabe que não assisto televisão. Você viu?
- Também não. Posso entrar?
- Ah! Claro, desculpe.
Maria Lúcia entrou deslumbrante com sempre. Estudavam juntos desde o ginásio. Faziam o curso de filosofia comparada na mesma faculdade. Como eram fanáticos por literatura, sem planejarem, toda vez que se encontravam, dizia um para outro algo sobre o livro que estava lendo, uma citação ou cena ou frase. O outro sempre tinha que adivinhar se não acertasse teria que comprar um livro. Maria Lúcia duas vezes pagou um livro para o amigo. Jose Val por sua vez, foi intimado a pagar uma vez só.
- Caramba! Não é nem dez horas e está um calor desses!
- Tire a roupa.
- Posso?
- Claro, sabe que entre nós não há pudores.
- É mesmo, respondeu Maria Lúcia se despindo.
Só de calcinha se aproximou do amigo. Tomou a garrafa das mãos dele. E com um bom gole na boca, beijou Jose Val obrigando-o a engolir a cerveja. Inesperadamente, sentindo os bicos dos seios espetando seu peito, preocupado em retribuir o beijo que recebia, foi forçado a engolir a cerveja transposta para a sua boca, levando-o a se engasgar babando o liquido gelado nos dois.
- Po, Maria Lucia, não faz isso!
- Por quê? Não gostou?
- Você sabe que não é isso.
- E o que é então?
- Caçamba! Posso ficar excitado e estuprá-la.
- Até que seria uma boa, sabia?
- Até pode, mas não quero.
- Tem razão. Também não quero ser estuprada, não por você...
Virou a garrafa tomando um bom gole, passando as costas da mão para limpar os lábios. Tinham uma amizade intensa, podia-se dizer até, despudoradamente sem nunca terem ido para a cama, no bom sentido da palavra. Os amigos não entendiam aquela amizade sem classificação, quer dizer, eles não conseguiam enquadrá-la numa classificação. Era uma amizade intensa, uma amizade que não se vê entre um homem e uma mulher.
- Posso te perguntar uma coisa?
- Claro Maria Lucia.
- Você nunca teve vontade de transar comigo?
- Não. Por quê?
- Ah! Não sei. Sou bonita e gostosa, atraente...
- Nunca disse ao contrário. Sabe que gosto de você, te admiro muito, acho bonito seu corpo, seus seios e tudo mais.
- Então...
- Então o que?
- Por que nunca transamos?
- Não sei. E você?
- O que tenho eu?
- Já sentiu com vontade de transar comigo?
- Pergunta difícil, não acha?
- Não acho, não.
- É impossível responder, pois desde criança nos conhecemos, brincamos juntos, fomos para a escola juntos, ginásio e agora faculdade. Sempre tivemos uma nítida franqueza, nunca rolou nada além dessa amizade... Não sei. Acho que não.
- Quer dizer que nunca se sentiu atraída por mim?
- Sim. Não, quer dizer. Acho você bonito, corpo atraente, másculo e tudo o mais, não sei, não teria tesão em dormir com você, e olhe que oportunidade nunca faltou.
- É eu sei. Às vezes me pergunto, se existe, claro, vidas passadas, acho que fomos irmãos, o que acha?
- Nunca pensei. Quem sabe.
- Nós somos a prova de que pode existir amizade entre um homem e uma mulher sem que haja sexo.
- Realmente. O que ninguém consegue acreditar nisso.
Estava urinando quando Romualdo entrou. Postou-se ao lado dele. Sentiu a veia se intumescer acelerando o coração. Cumprimentaram-se:
- Oi.
- Oi.
Sorriram um para outro. Não conseguia desviar os olhos. Romualdo sorriu levando a mão para baixo ao mesmo tempo em que conduzia seu olhar. Olhou obedecendo, não tinha como não obedecer, a atração o dominava, era mais forte, há muito tempo esperava uma oportunidade dessas, não poderia perder. Por isso, olhou.
- Então, gosta? – perguntou Romualdo.
Mal conseguiu expressar, sua voz saiu num grunhido imperceptível.
- Ahn!ahn...
- Quer pegar?
- Pegar?
- É. Pegar...
- Ahnnn..
- Ei, Josildo... Oh, Josildo, acorde, tá sonhando de olho aberto é?
- Ahn... Quero...
- O que você quer?
- Ahn, nada, não quero nada.
- Acho bom mesmo. Olhe o chefe quer que você leve esses papéis lá para baixo.
- Ok.
Pegou os papéis e saiu apressado. Estava meio excitado. Colocou os papéis na frente para ninguém perceber. Antes de sair da sala, olhou para traz. Lá estava Romualdo observando-o. Credo! Pirava, estava vendo alucinação. Nunca uma coisa dessas aconteceria com ele. Achava Romualdo bonito, mas... Precisava se controlar ou, pedir transferência.
Maria Lucia jogou o manuscrito em cima da mesa.
- Mais um romance com a temática gay?
- É o que vende.
- Quer dizer que você escreve conforme o que vende, é?
- Não vejo porque não aproveitar.
- Tudo bem. E a qualidade literária onde fica?
- E precisa ter alguma qualidade literária?
- Claro.
- Para que? Quem vai ler um livro de qualidade literária?
- Eu, por exemplo.
- Ah! Você não conta.
- Entendo. Responda-me.
- O que?
- O primeiro romance quanto vendeu?
- Vendeu bastante, muito até.
- E o segundo?
- Vendeu bem.
- E o terceiro?
- Pouco.
- Então, o que me diz.
- Nada.
- Nada? Ora, Jose Val. As vendas estão caindo.
- Ora, você não vai querer que me tranque num hotel para escrever.
- Quem sabe, assim você se ilumina mais e consegue escrever algo bom.
- Vá passear...
- Aliás, vou mesmo. To precisando.
Maria Lucia se vestiu. Tomou mais um gole de cerveja. Deu um beijo na boca do amigo, e saiu batendo a porta.
Pronto, estava sozinho outra vez. Leu o que estava escrito na telinha branca do computador:
“Jack não tem siso,
Jack não tem mais riso”.
Riu. Maria Lucia era uma brincalhona mesmo. Pegou outra garrafa de cerveja. Apoiou-se outra vez no umbral. Nisso, um grito ecoou lacerante seguido pelo barulho de estilhaço de vidro. Depois um silêncio enorme se fez ouvir.
E quando Maria Lucia entrou no apartamento do amigo, a primeira coisa que viu foi o que estava escrito na tela do monitor:
- “Finalmente, Leo se matou.”