De outros carnavais
"Com o efeito das construções verossimilhantes que concedem um toque condizente com uma realidade referencial, eu me matei no texto para não me matar fora dele" - Francisco Medhecerys.
Oito era o seu número da sorte havia dito uma cigana usando o dom da quiromancia, era também o resultado da soma unitária da sua idade, duas décadas e seis anos, vinte e seis, seis mais dois, oito e não havia sorte alguma ali. Há uma semana fora pego de surpresa ao retornar de uma viagem a trabalho, a morte da matriarca da família levou o que restava da sua querência de viver e sempre que saía do expediente, ia de encontro com o seu novo vício letal. Ali na mesa do barzinho ele se questionava o motivo de ele não morrer primeiro que a amada anciã, julgava injusto ela cheia de vitalidade e mesmo com as limitações da idade, querendo viver e ele jovem sempre imaginando-se em cenários de morte, de sua própria morte. Se perguntava como conseguira chegar vivo na atual idade, quando seu plano era na infância espetar uma tesoura no umbigo igual fez a atriz de uma novela mexicana ou, anos mais tarde se jogar do viaduto em que passava a caminho da escola nos tempos da adolescência, podia se lembrar claramente do córrego raso e de águas turbulentas correndo abaixo do concreto, pensava que ao mergulhar da ponte se a queda não o matasse, certamente as águas repletas das imundícies animalescas o fariam por envenenamento. Quantas vezes voltando sozinho parava em meio ao perigo de ser assaltado e felizmente também morto pelo ladrão, para admirar o movimento dos lixos carregados pela correnteza e tremendo tocava os pés no guarda-corpos respirava nervosamente tentando ignorar as pequenas âncoras que trazia dentro do peito, os pais, as irmãs e os dois melhores amigos.
Olhou o copo quase vazio e levantou a mão, pediu a mocinha que lhe trouxesse a garrafa inteira da bebida e mesmo não possuindo o hábito de ingerir tanta cachaça, ele o fez entre caretas e labaredas descendo garganta abaixo, a cada trago tentava se dissociar das memórias que o molestava sem parar, lembranças de momentos em que lhe eram cobradas atitudes de ação e por tanto temer as coisas boas da vida entrava em inércia e recuava, tal tormento assemelhava-se a uma pseudo face demoníaca de Mordrake sempre lhe sussurrando os próprios fracassos e louvando suas misérias humanas. Aquilo não era uma vida, por mais que ele tivesse uma saúde de ferro, tinha pouco, mas dinheiro suficiente para a sobrevivência na metrópole, amigos verdadeiros que o amavam, igualmente sua família, mas nada nada conseguia romper o laço que enviesou o rapaz à morte desde a tenra infância. Não era uma vida, era o medo dela. Jamais se aventurou por medo e nele mesmo residiam seus terrores, o terror da homossexualidade que de certo congelaria o amor de seus pais, o horror ao relembrar de todas aquelas enfermidades transmitidas pelos contatos corpóreos, mesmo que estivessem protegidos pela emborrachada pele de Vênus, ele temia contrair estigmas incuráveis, o medo de sair e nas ruas ver refletido nos espectadores transeuntes o próprio julgamento depreciativo de si, diminuindo-se ou até mesmo se maldizendo, o medo de decepcionar as pessoas de quem gostava e eventualmente essas o deixassem como tantos outros. Todo esse complexo de fobias o cegava e o aprisionava tanto, que foram se infiltrando como as águas inertes numa laje descoberta, enferrujando suas vigas, esfarelando em uma espécie de “tanto bate até que fura” que não tardaria desmoronar e ele se via impotente como uma estátua em meio ao caos. repetindo nos lábios duros a mesmíssima oração de exício. Há anos vinha tentando consigo o evento coronário que quase ceifou a vida de seu progenitor, mas nunca sentiu uma arritmia, isquemia ou dor sequer.
Levantou e foi ao banheiro, e mesmo sabendo que seria inútil pois sofria de paruresis adentrou na última cabine, pegou um bolo de papel higiênico, retirou do bolso um frasco de álcool gel suspendeu a tampa da privada, higienizou a louça sanitária, se sentou e esperou um, cinco, dez minutos, a bexiga estava dolorosamente cheia, mas nenhuma gota de urina fazia menção de sair…
Fechou os olhos e pela oitava vez repetiu o mantra implorando para a morte o levar. Aquele entrave era mais uma vez o medo o aprisionando. O pavor de ter alguém na cabine ao lado observando-o, rindo de sua dificuldade, rindo do tamanho ínfimo de seu sexo flácido, medo daquele evento em sua infância se repetir, medo de alguém entrar e lhe molestar novamente, cansado ele colocou tanta força que as veias saltaram-lhe na testa e aos poucos um fino fluxo de urina foi saindo em meio às lagrimas. Quando retornou para sua mesa e sentou-se estranhou que o copo que deixara vazio estava cheio novamente, fingia mexer no celular mas examinava bolhas suspeitas na aguardente. Imediatamente pensou que se tratava de um boa noite cinderela, pegou o copo e de canto de olho observou se havia algum espectador interessado na ingestão da química, contudo não detectou ninguém. Levantou, pegou a garrafa e foi até o balcão, pagar a conta e uma taxa extra por querer levar o copo do estabelecimento.
Ao sair foi tomado pelo cheiro de maresia na orla marítima, olhou no relógio estavam há dez minutos para as duas da manhã, sentou-se num balaústre que separava a pavimentação da faixa de areia, voltou o olhar para a paisagem neon florescendo na selva urbana ofuscando os tilintares das estrelas, virou a garrafa e sorveu a bebida restante em três goles, o jovem estava tão distraído com a primeira embriaguez de sua vida que não percebeu uma aproximação ao longe. Pegou o copo batizado e caminhou em direção a algum hostel ali por perto, ao longo do caminho ele refletia se deveria beber ou não, sorria com a possibilidade de ser um apropriado convite da morte e chorava porque tinha muito medo dela e das consequências para seu espírito que certamente seria condenado ao umbral. Era a sensação mais louca da sua vida, felicidade e tristeza acontecendo ao mesmo tempo, de repente, estancou o passo, olhou a escuridão do mar pontilhada com os vagalumes domésticos das casinhas na ilha, relutava em beber a derradeira dose, mas por fim, levou o copo aos lábios e entornou de uma só vez.
Recostou-se na balaustrada e depois de alguns minutos sentiu o efeito da droga, a ilusão que se formou em sua mente era a de estar em pleno carnaval, num mar de mãos que tocavam seu corpo e ele livre do pudor se jogou às profanidades da festa, a cada onda de toques ele se sentia cada vez mais leve, o sapato não apertava mais seus pés, sua bolsa já não tinha o peso dos livros e notebook, seu relógio desapareceu do pulso, a carteira dos bolsos, mas nada disso importava porque ele estava deslumbrante na avenida, livre de qualquer receio ou medo, estava imunizado contra os olhares, as fofocas e tantas outras hostilidades que temia. Enquanto pulava ao som das divas do axé levou um empurrão surreal que partiu a corda de contenção e caiu na areia, sentiu uma forte dor no pescoço e nesse momento se assustou.
"Para onde foi o meu precioso laço com a morte? " Perguntou em voz alta. O som parou e os foliões ficaram o observando assustados, ao longe vinha caminhando, um rapaz divinizado numa pele de jaguar ornado com infinidade de acessórios de marfim, trazia em sua fantasia um par enorme de asas marrons, contrastando harmoniosamente com sua tez noite de lua nova, no rosto tinha um sorriso alvo como a luz solar, dispensou sua lança e abaixou próximo do acidentado. Tocou-lhe o pescoço quebrado e num segundo estava restituído, estendeu a mão e levantou o rapaz, quando este ficou de pé tocou-lhe o rosto e sorriu, visto que doravante estava tudo bem, fez sinal para a festa continuar, desvencilhou-se do socorrido e quase que instantaneamente sumiu em meio a multidão. A festa prosseguiu pelo circuito carnavalesco e o jovem recém liberto a acompanhou.