A Galinhada
Conto
Dedalinda se aposentou e comprou uma pequena chácara, nas proximidades da cidade. Sua vida de funcionária pública não conseguiu exterminar seus traços rústicos de mulher da roça, “beiradeira”, como ela mesma se definia. Mas, se por um lado isso era uma realidade, sim, por outro, os anos de urbanidade tinham lapidado muitos aspectos dessa vida beradeira. Coisa simples para uma pessoa da roça, como abater um frango, tinha ficado no passado, bem no passado. Ela sequer pensava nessas coisas.. Na sua chácara o verbo “abater” era sinônimo de “matar”. “...e matar é crime, maninho!”, se defendia.
Paradoxalmente, Dedalinda, apesar de todas essas premissas, tão cedo quanto pode, iniciou a criação de galinhas, patos, e outras aves de pequeno porte. Ela não estava só nessa jornada. Narí. seu marido estava junto. Era “pau para toda e qualquer obra”. O casal estava coeso e sintonizado em todos os assuntos, sobremaneira, aqueles ligados a sua nova moradia.
Um belo dia Dedalinda anunciou uma galinhada no seu “Rancho”, como passou a chamar sua chácara. Convidou "meio mundo". “Você dobra a direita, depois de novo, depois a esquerda aí você vai ver a plaquinha escrito ‘Rancho Feliz’”. Foi o “bilhete” via whatsapp que mandou para quase todos os convidados. Que cada um levasse seu “álcool” e disposição pra comer muita galinha. Seriam dez.
No dia combinado, já lá pelas nove horas, começaram a chegar os comensais. Era gente de tudo que é jeito. Gente até que nunca tinha visto… Mas tava “de boa”, como dizia Narí. Estaria! Pois o tempo foi passando e não saía um só caldinho. “Calma, gente! Tá saindo!”, tentava acalmar os ânimos… Agora já era meio dia e “nada”! “Calma, gente! Tá saindo! É já”.
Quando já era quase uma da tarde chega o Barriga, o ex-cunhado de Dedalinda. Eram amigos e se gostavam muito, mas ela decididamente, até pra não tirar o Narí da zona de conforto, não o tinha convidado. “Cadê a p. dessa galinha, ‘Dedafeia’? Tá querendo me fazer de palhaço é? Tô brocado e me perdi bem umas três vezes pra chegar aqui”. Era o jeito dele. Nada de maldade. Sempre fora assim com ela, desde os tempos em que eram “parentes”. Mas agora ali a situação não parecia muito boa… Sabiamente, Dedalinda, antes de cumprimentar o ex-concunhado, já apaziguou a situação junto ao marido de forma que dez minutos depois os dois já estavam se chamando de “corno” um ao outro, numa explícita relação de amizade. Mas a galinhada…
— Barriga, pra ti eu conto. — começou se justificar Dedalinda — Eu separei dez galinhas ontem pra matar hoje. A Zefa, a Zefa dois, a Andiroba, a Malva, a Malvina , a Barriguinha, a Papo-furado, a Sem-papo, a Pelada e a Noiada. — Enumerava os nomes olhando pro infinito, como se apenas estivesse empenhada em não esquecer nenhuma. E ao mesmo tempo em voz baixa para que Barriga entendesse que não dizia aquilo exatamente para ele…
— Ai, ai, ai, ai! Só tu mesmo… pra ficar dando nomes pra tuas galinhas. Aposto que tu se lembra de todos os nomes dessas quase cem galinhas aí…
— Quase duzentas! Sei sim! — Respondeu Dedalinda àquela que nem bem fora uma pergunta mas que era a deixa que ela queria para falar de suas galinhas. — E não sou apenas eu que sei os nomes delas: elas também sabem disso. Cada uma sabe o seu próprio nome. Mas depois eu falo disso… quando todo mundo for embora… — “Virou” um copo de cerveja e continuou: —Tu fica até mais tarde! Pra gente conversar sobre tudo...
— Fico, sim! Mas agora me veio uma questão… conhecendo cada galinha pelo nome, como que tu teve coragem pra matar as bichinhas… e dez, logo?
— Pois não é esse, o motivo da demora…
— Não vem me dizer que se despediu de cada uma, pediu desculpa…
— Vou te contar… — Disse isso enquanto deixava a cozinha depois de verificar o tempero e o ponto das quatro panelas com galinha: três no fogão à lenha e outra no à gás. — Vem aqui comigo vou te mostrar o meu galinheiro. — E seguiu rumo ao tal galinheiro com uma garrafa de cerveja e dois copos.
Não havia galinheiro formal, normal. Era uma área de uns dez metros de comprimento por uns oito de largura com duas goiabeiras dentro e vários poleiros improvisados com troncos e galhos de árvores da floresta. Na maior das goiabeiras havia etiquetas feitas com papel dentro de saquinhos de "geladinho", "didim". Nesses papéis vários nomes que Barriga logo imaginou, fossem das galinhas e, por isso, não aguentou e caiu na gargalhada.
— Não vem me dizer que tuas galinhas seguem essas etiquetas… que elas sabem ler!
— É meu sonho… quem sabe um dia. Mas algumas delas sempre dormem no mesmo local. Essa aqui, oh: a Misvalda… — Não chegou a concluir, foi interrompida.
— Misvalda o quê? Misvalda é o nome da minha mãe… Que sacanagem é essa? Porque não coloca “Zélia”?
— Uma homenagem a ela. Adoro dona Misvalda, como adoro a minha mãe — Agora apontando para outro galho onde se lia “Zélia” na etiqueta… — Foi o que desarmou Barriga. — Mas eu te chamei aqui foi mais pra explicar o atraso na comida.
— Tá! Que que houve?
— Eu separei as meninas, como já falei. — serviu uma boa dose de cerveja para o Barriga e reabasteceu seu próprio copo — Mas hoje pela manhã…
— Já sei! Fugiram.
— Fugiram nada!
Nesse momento uma galinha feito louca entrou pela porta do “galinheiro” e partiu rumo aos dois amigos que agora estavam sentados numa das bases dos poleiros.
— Deixa, deixa… — Adiantou Dedadlinda — Ela vem tomar cerveja — Enquanto a galinha se aproximava do copo de sua dona, estrategicamente colocado a sua altura.
— Pronto! Você é maluca? Galinha tomando cerveja?
— Elas não são apenas galinhas… São minhas amigas de “papo”, literalmente. — Risos — Quando o “Lígula”, comeu a Medusa eu quase morri também.
— Epa! Para tudo! Quem é esse “Língula”? Porque Medusa suponho seja uma das suas galinhas!
— Era! Linda, ela. A única que não bebia mais cerveja… Só vinho. O nome dele é Calígula e o apelido é “Lígula”. É aquele lá! — Apontado para céu de azul intenso sobre a floresta densa que circundava o local.
— Onde? Não tô vendo nada!
— No topo da Poderosa! — Apontando agora para a copa de uma castanheira que se sobressaia dentre as outras árvores da floresta, mas a uma boa distância. — Um gavião, menino! Vou fazer ele voar! — Pegou uma enxada e apontou o cabo para o lado da Castanheira, como se fosse uma espingarda.
— Nossa! Que lindo! Parece uma águia. É enorme! Porque ele voou? É porque tu mostrou a enxada e ele é preguiçoso?
— Ele pensa que é uma espingarda! E eu atirei na direção dele quando ele comeu a Medusa. Pelo Narí ele já estava morto… Mas ele agora respeita! Fica só por ali…
— Tu é muito loca, mesmo! Tá tomando os remédios direitinho? — Risos.
— Parei! — Gargalhada. — Minhas amigas são minha terapia.
— Mas sobre a galinhada?
— Vixe maria! É mesmo! Tá quase pronta. — Levantou-se e gritou — Narí! Vê as panelas aí!
— Tô querendo saber o porquê do atraso… que tu tava me contando.
— Pois então, na hora que peguei a Noiada, ela fez o “cocoricó” de chamego e encostou o “rosto” no meu peito. Ai fechou os olhos…
— Rosto! Galinha lá tem rosto!... Ai tu fechou os olhos também e puxou o pescoço dela?
— Mas nunca nessa vida! Nunca! Nem morta! — Os gestos foram ainda mais convincentes que as palavras — Sabe que eu fiz? Chamei o Narí e falei: “Corre! Pega o carro e vai lá na cidade e compra dez galinhas lá, urgente…” Ele ainda perguntou: “Vivas?”. Respondi: “Só se for pra abençoada da tua dadivosa mãezinha sair lá do túmulo dela e vir matar elas aqui”
— Que história maluca! E agora? O que tu vai fazer com tanta galinha?
— São minhas parceiras de cerveja nos fins de tarde. Vão morrer de velhice, morte natural… Porque nem o Lígula chega perto delas mais…
— Ou de cirrose… — Gargalhada. — Mas o nome da Noiada veio de onde? Não vai me dizer que ela fuma maconha…
— Tá maluco! Claro que não! É que ela é meio "alesada": anda com o bico aberto e olhando pro infinito.
— E a medusa? Tinha mais de uma cabeça?
— Não tinha, não. Mas ela era tão rápida na hora de comer que parecia que tinha umas três. E vivia sempre comendo. Acho que foi por isso que não viu o Lígula no dia do "desenlace" dela. — Pareceu relembrar o tal fatídico dia… Olhou na direção da Poderosa e lá estava tranquilo limpando as penas, o famigerado Lígula.
— E aquele monte de amigas que tu tinha, cadê?
— Um bando de galinhas. Todas falsas...
— Pelo visto trocou "galinha" por galinha — gargalhada.
— Troquei amigas galinhas por galinhas amigas. Mas vamos almoçar? Já deve tá pronto.
— Vamos. Só não se esquece que é galinhada.
— Que minhas amigas galinhas não te ouçam… quer dizer que minhas galinhas amigas nem desconfiem...
Agosto de 2014
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Ilustração: Fragmento esmaecido de imagem do Canal Rural
Inspiração: Baseado em fato real.