A SANTINHA
— Rogaciana? Rogai por mim, oh, Deus! De onde tiraram nome tão esquisito pra me batizar? — Ciana indagara, e a mãe lhe contou: “Vovó Rogaciana, sua bisavó, contraiu enfermidade rara. Ficou acamada um tempo sem fim, só deitada num catre coberto de dossel... Tão branquinho que doía nos olhos! A pele sem sol foi virando um leite! Parecia uma boneca daquelas de louça. Virou mesmo uma santinha. As mãos pálidas de dedos compridos em cima do peito, iam passando devagar as contas do rosário. A gente não escutava direito, mas tinha um murmúrio de rezas. O povo vinha de longe pedir milagres. Era gente de cabeça perturbada, gente estropiada, de espinhela caída, pedra no rim que não descia, um cordão sem fim, a fila dos desvalidos à porta da casinha perto da ponte.
“A santinha não falava, não olhava, não virava na cama, era de fazer dó — a mãe de Ciana engasgou contando as passagens, orvalhou os olhos de tanta fé e saudade de vó Rogaciana. Era menina, ela contava, mas ia com a mãe fazer os préstimos, tratar as feridas no corpo debilitado. Nunca ia esquecer aquela sombra sumida nos véus, perdida no sofrimento, mas sempre piedosa com a fila dos infelizes.
"Um dia, Deus Pai chamou vó Rogaciana. O cortejo da santinha rumou para a praça, onde padre Bento ungiu o corpo para adentrar os sagrados portais de São Pedro. No campo santo, vó Rogaciana foi entregue sob clamores. Foi choro, foi ranger de dentes, que o povo agora era órfão. E ela, a neta, menina sozinha, perdida na multidão, tinha jurado na descida do caixão à tumba: tivesse um dia uma menina, ela haveria de ser também Rogaciana. Foi isso, minha fia, o seu nome é uma coisa que veio da fé, uma ideia do coração.”
Tema da Semana: Ideia do Coração (conto)