O inferno do medo

1986. Sexta feira santa. Ruth, desesperada, olhava para o vazio. Não fazia qualquer movimento, mas sentia um turbilhão na sua cabeça.

Precisava pensar no quê fazer, qual atitude tomar. Acabara de assistir no noticiário da TV que um carro fora assaltado na BR 101 em Curitiba, à noite, e que nele foram encontradas três jovens mortas, duas delas em estado deplorável, face aos estupros cometidos. A identidade de uma delas fora revelada. Chamava-se Dilce dos Reis Collatto. Era colega de trabalho e amiga de sua prima Rose. Rose e Ruth dividiam um apartamento em Porto Alegre há sete anos.

Dois meses antes Rose, em viagem à Foz do Iguaçu, conhecera Airton, natural de uma cidade muito próxima, São Miguel do Iguaçu. Não perderam o contato e decidiram se reencontrar no feriado de Páscoa. Rose combinara tudo com antecedência e, de última hora, soube por Dilce que ela e algumas amigas passariam o feriadão em Foz. Decidiram abrir mais um lugar no carro e tudo ficou resolvido na semana anterior.

Como Ruth estudava à noite, pouco sobrava tempo para conversar com Rose. No dia anterior à viagem se despediram alegremente, já que as duas teriam, a princípio, finais de semana interessantes pela frente.

Ruth também reencontrara um ex colega de ginásio e rumaria para sua cidade natal reencontrá-lo. As duas, que andavam meio desencantadas com a vida, visualizavam perspectivas de bons momentos pela frente.

Naquela sexta feira, o olhar vazio de Ruth foi tomado por um desespero tal que, por mais de uma hora não conseguiu sair do lugar. Não havia celular na época. Ela não sabia o que fazer, o que dizer, como proceder.

Chorou por seus tios, pais de Rose, que residiam na mesma cidade, rezando para que a notícia chegasse no melhor momento. Ela sabia que não deveria se antecipar. Teria que esperar, teria que rezar, teria que enfrentar uma situação inesperada e demasiadamente triste. Rose era a única filha mulher de seus tios. Fora criada como uma princesa.

No noticiário nacional daquela noite o acidente ganhou manchete e contornos ainda mais crueis. Já havia a confirmação da identidade de outra jovem e restava a da terceira, que fora encontrada caída em um penhasco. A dificuldade para identificação se dava em função do furto de todos os seus pertences e do choque em que se encontrava a mãe de Dilce, a única pessoa que poderia identificar a terceira vítima.

Aterrorizada Ruth pensou em entrar em contato com a polícia para muní-la com as suas informação e finalizar, por completo, a tragédia que já abalara o país inteiro. Mas decidiu, seguindo o seu instinto, aguardar. Tomou um tranquilizante em dose dupla e dormiu. Esqueceu do encontro que havia marcado com o ex colega. Acordou no domingo sem qualquer outra novidade. No final da tarde retornou à Porto Alegre decidida a não mais ligar a TV. Enfrentaria o que viesse pela frente no momento certo. Mais um tranquilizante em dose dupla e mais uma noite se passou.

Na segunda feira, já no trabalho, Ruth recebeu um telefonema. Era Airton solicitando que ela encomendasse um buquê de rosas vermelhas para a chegada de Rose. Atônita questionou-o sobre a prima. Sem entender ele respondeu: “chegará no vôo 342 da Varig, por volta das 10h”. Engasgada Ruth prosseguiu: “mas como ela chegou até aí?”. Foi quando Airton relatou que, na última quarta-feira, enviara um PTA para Rose de surpresa, com o intuito de ficar mais tempo com ela. Era a fala de um jovem apaixonado.

Ruth, ainda atordoada, olhando para o mesmo vazio da última sexta feira, em voz trêmula confirmou a compra das flores e calou-se.

Escrito para a Oficina PROVAÇÕES da Pragmatha Editora - Clube da Prosa módulo 04

Rosalva
Enviado por Rosalva em 15/10/2021
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