José, para onde?

Restaurante oferece vaga para garçom. Local: Centro do Rio.

Desempenhar tarefas pertinentes à rotina de garçom. Período: Tempo integral - Escala 6×1, e um domingo no mês. Requisitos exigidos: ✔ Ensino médio completo. ✔ Que tenha experiência em restaurante, preferencialmente registrada. Vantagens: 2 salários, passagem mais benefícios Enviar currículo para lapa@laparj.com.br

Ao ler o anúncio da vaga de emprego trazida pelo tio, José sorriu. Um sorriso amarelo e silencioso. O primeiro em três dias, desde que deu entrada na emergência do Hospital Carlos Chagas. A enfermaria masculina tinha quase todos os leitos ocupados e quase todos os pacientes dormiam. José não conseguia relaxar. Os olhos acesos e atentos observavam com atenção os classificados enquanto o tio já se despedia da rápida visita.

- Um conhecido está trabalhando lá. Eles sempre precisam. E você terá alta amanhã. Daqui a alguns dias estará cem por cento. Pode tentar.

O rapaz agradeceu e guardou o anúncio junto aos seus poucos pertences. Com a saída do tio, levantou-se com cuidado e caminhou devagar até a entrada da enfermaria feminina, que ficava quase ao lado. Julia estava no leito junto à parede e dormia tranquila. Ao ver que a companheira estava bem e descansando, ele retornou ao quarto, e por alguns instantes passou a observar pela fresta da janela o sol que se despedia e a noite que aos poucos despontava morna, sorridente e cinza, como as paredes do local que o recebeu em companhia de sua amada em seu momento mais crítico.

José e Julia conheceram-se no ônibus, ambos retornando do trabalho.Após a conversa que durou quase todo o trajeto, viram-se estendendo o papo e dividindo a famosa batata frita que nenhum dos dois ainda havia experimentado e uma Coca Cola. Como pode alguém não conhecer a batata de Marechal? Resolveram reparar a dívida juntos e compartilhar uma primeira e agradável experiência. Em poucos minutos observando o movimento da rua, as recordações já eram enxurradas e tinham tamanha força que escorriam pelos olhos escuros e firmes de José.

Ambos na casa dos trinta anos, viram-se em pouco tempo mergulhados em planos e pressa. O relacionamento já durava um ano meio entre idas e vindas no mesmo ônibus e nos mesmos horários. Assim, não moravam longe, não mantinham amarras passadas com ninguém e tinham afinidade suficiente para levar à frente a relação. Parte dessa afinidade nascida há alguns metros dali, quente, perfumada e saborosa como a batata, principal culpada pela manutenção dos encontros, reencontros, risadas e descobertas.

José voltou ao leito, ansioso pela chegada do médico na manhã seguinte e pela liberação. Julia pela previsão, aguardaria ainda mais um dia para voltar à casa e à rotina, mas o fato de estarem bem, trazia conforto e esperança. Virou-se de lado, fechou os olhos na tentativa de continuar passeando pelas lembranças do passado recente. A cada ruído de ônibus que seguia na rua da frente, o rapaz sentia tudo como se fosse o primeiro momento. As promessas feitas à Julia, as primeiras economias guardadas, o contato com os parentes próximos, os primeiros passeios, a decisão de alugar uma casa em Cascadura e a perda do emprego.

Em uma manhã de quarta-feira, que deveria ser apenas mais uma uma, José, que trabalhava há oito anos como auxiliar em um restaurante em Botafogo, recebeu do gerente o aviso da demissão. Eram cortes necessários em tempo de crise. José relutou para aceitar a decisão, afinal as crises passam e ele já tinha tempo de casa e experiência. Em pouco tempo precisariam dele. Porém, não era possível reverter e nem mesmo cumprir aviso prévio. A crise era sanitária também. Até mesmo a recisão foi negociada. Recebria em duas vezes, pois mais seis funcionários haviam sido demitidos também e a despesa ficou grande para o empregador.

Ele desabafou com Julia. O que aconteceria agora com os compromissos assumidos e os ainda por assumir? Os planos seriam todos interrompidos. Só daria para segurar as dívidas e evitar que se tornassem uma bola de neve. O depois, não havia como prever. Julia tentou consolá-lo. Em algum tempo, um novo emprego chegaria. Era só questão de ter um pouquinho de paciência.

O jovem homem se abateu. Saiu sozinho para pensar. Conversou com um amigo encontrado por acaso, mas não quis tocar no assunto. Inventou uma desculpa para se retirar e apesar de não gostar de beber sempre, parou em um boteco e comprou uma caipirinha e uma água mineral. Julia gostava de caipirinha, mas também não era fã de bebida alcoólica, então raramente bebia.

José saiu do boteco com a cabeça em turbilhão. Sentia-se diminuído, sentia que não era mais homem suficiente para Julia. Caminhou até a praça mais próxima e sentou-se. Olhou em volta. O movimento era pouquíssimo. Observou por alguns minutos o céu rosado e baixo, que parecia um teto a despencar-lhe sobre a cabeça a qualquer instante. Pensou na solidão que o acompanhou praticamente por toda a vida, até a chegada de Julia.

Antes, os encontros não duravam, as conversas eram fugidias e ralas, sua pele era fria. Era costumeiro e era bom. Ele só tinha a si mesmo. A companheira lhe mudou o destino ao entrar naquele ônibus. Agora, ele era tão pouco pra ela, pra si mesmo e para a vida. Não era justo viver sem viver. Não era capaz de proporcionar mais nada a ninguém e sequer de recuperar o prazer de estar consigo mesmo.

Levantou-se e comprou em um dos camelôs um pequeno frasco de veneno para ratos. Voltou a sentar-se na praça enquanto a água mineral já começava a esquentar entre as suas mãos. José divagava. Sentia-se sufocado. Tomou ainda na praça parte do veveno, colocando o restante no bolso da calça, dirigindo-se rapidamente pra casa.

No momento em que chegou, começou a sentir fortes dores estomacais. Deitou-se fraco, impotente. Pensava em Julia, e a moça chegou minutos depois de José ter desmaiado. Tentou animá-lo, sacudi-lo, mas sem sucesso. José não acordava. Ela então chamou uma ambulância. Era impossível para ela socorrer o rapaz sozinha. Foi informada de que a ambulância chegaria em até quinze minutos. Inquieta, mexia no corpo fraco e frio de José, até que caiu do bolso do homem, sobre a cama, o frasco transparente com o restante do veveno comprado.

Entendendo o ocorrido, julia rapidamente tomou o restante do veneno com o pouco da água trazida pelo companheiro e que já estva quente sobre a pia. Sentou-se no sofá da sala para aguardar o socorro ou final de uma história ainda incompleta. Suas lágrimas eram quentes e tinham sabor de mar. O mar que serviu de cenário para as fotos preferidas do casal. Sua face ficou vermelha. Ela encolheu-se sobre o velho sofá e sua consciência despediu-se. Em alguns instantes, uma vizinha viu a chegada do socorro e foi até lá. Deparando-se com a situação, encaminhou o atendimento do casal, que recebeu lavagem estomacal e a atenção dos médicos e enfermeiros do Hospital Carlos Chagas. Nada de “comida normal” por três dias. O estômago de ambos estava bastante debiltado

José era apesar de tudo um homem de fé e acreditava que, se estavam vivos era sinal de que assim Deus queria. O restante então ficaria nas mãos dEle. Agradecia todos os dias por Julia estar viva e bem. O caminho único que iniciaram, seria também terminado juntos até que a vida os levasse ao ponto final, como o trajeto que faziam de ônibus há vários meses. O homem era todo gratidão e arrependimento. Agora, só o presente importava. A rua fazia barulho. Sobre o leito, sua mente fazia ainda mais. Seus olhos fechados, ainda escorriam amor e sal.

Ainda no mesmo dia, o tio, foi até a casa de José, deixar tudo em ordem para o retorno do sobrinho e posteriormente da companheira. Em uma limpeza rápida, percebeu que o frasco de veneno para ratos ainda estava na lixeira do banheiro. Curioso, olhou-o de perto. O prazo de validade do produto estava vencido há três meses. O tio sorriu agradecido pela peça pregada pelo destino e pela tristeza muitas vezes não deixar espaço para a razão e para as observações atentas. Então, meneou a cabeça... Ainda bem! Você não morre. Você é duro, José!