Galinha Preta
Dizem que boatos, geralmente os maldosos, nascem, não em um tempo definido, nem se sabe onde ou quem o iniciou, mas cresce conforme suas regras e as particularidades de cada comunidade. É um flecha invisível que fere tanto como a real a pessoa que é sua vítima. O pior boato é aquele que é mentiroso, inventado, pois esse fere fere duas vezes sua vítima. E contra ele, nada, ou quase nada pode se fazer, tem vida própria e mesmo quando a sua plenitude é perdida, ainda vaga de tempos em tempos, de modo que nunca morre e mesmo que pare, fica gravado na memória do local, algo terrível, pecaminoso, ou mesmo vergonhoso que uma determinada pessoal provocou ou foi vítima.
E se a vítima tenta se defender pra diminuir sua força, o resultado quase sempre é o contrário, ele se torna mais voraz, mais veloz e algo é acrescentado a ele para se tornar mais violento. E o alvo mais constante do boato é aquele que tem uma tendência a ser diferente, aquele que não segue, não o código, mas a simples maneira de viver ou de ver a vida daquela comunidade
Durante a Pandemia, em uma tentativa de sair da turbulência da cidade grande fui passar uns tempos numa pequena cidade onde reside alguns parentes. Imaginava que lá, o meu isolamento se tornaria menos doloroso. Passei a morar numa casa grande e demonstrava frequentemente que tinha algum recurso. Na cidade andava muito nos melhores lugares e gastava sem contenção. O tempo que fiquei trancafiado na cidade grande permitiu que eu guardasse uma boa soma, e nada como lugar onde o custo de vida era menor para gastar um tanto desse dinheiro. Lá tinha uma vida tranquila, os meus recursos triplicaram pelo custo diferente da cidade grande. Nesse lugar já tive grande amigos, no entanto, muitos se mudaram pra outras cidades, outros ficaram indiferente comigo, e um ou outro havia morrido, E os meus parentes não me dava a satisfação de existência que minha alma pedia, Então a maior parte do tempo eu vagava por ai e o lugar que eu mais frequentava era o rio, Esse rio em outros tempos já foi um rio largo, cristalino, de belos poços onde mergulhávamos e tomávamos sol. Porem, algo aconteceu, se estreitou, agora parecia um córrego, onde uma ramagem estranha saiam de sua margem e avançavam para a outra, dessa maneira, na sua maior parte não víamos suas águas, mas o verde musgo que cobria sua superfície e nos causava uma sensação de abandono ou até mesmo repulsão. Mas em um lugar ou outro essas plantas não estavam e alguns desses lugares, que dava no máximo até a cintura dava pra nadar.
E acabei me encantando com um lugar que ficava há uns 2 km da cidade Além do rio, nesse lugar havia um curral antigo e estava desativado. As madeiras estavam velhas, quase podres, e uma coisa que me chamou atenção era o fato dos arames farpados, esses enferrujados, porém firmes, foram montados como se ali não prendesse vacas ou bois, mas algum bicho muito pequeno tão pequena era distância dos arames entre si.
Então, o que no começo era um dia ou outro de descanso foi se tornando rotineiro, muitas vezes perdia horas procurando pedras que eram fartas no fundo do rio, e elas tinham formas tão belas, encantadoras e cores tão lindas que cada uma selecionada levava pra casa, ou deixavam em algum ponto onde em outro momento poderia pegar. E toda vez aquele curral me chamava muita atenção. Imaginava o tempo em que era fértil, mugidos, vaqueiro, a tirada do leito, o dia amanhecendo, os baldes sendo despachados no lombo de um cavalo. E aos poucos fui retirando a atenção da cidade e colocando nas fazendas, nos caminhos de terras, logo me engracei com as diversas formas de cogumelos, sempre procurando algum que li em algum lugar que era terapêuticos, mas como li também que alguns eram venenosos, acabava logo logo jogando fora.
Fotografava aquele lugar diariamente e cada foto mesmo sendo do mesmo lugar meio que transfigurava e esse mesmo lugar parecia outro, como se de um dia para outro, outra dimensão tomava o lugar da anterior, como uma mágica, o lugar estava sempre novo e fresco. E passei a ir não apenas diariamente, mas às vezes, duas a três vezes por dia.
Aquele meu comportamento, penso que pareceu muito suspeito para algumas pessoas, imagino que ir andar no pasto de vez em quando seja o normal, mas a todo momento livre, como uma compulsão ir ao mesmo lugar se torna não natural ou suspeito.
Comecei esse conto falando de boatos, falei o quanto são perniciosos, justamente para que o leitor saiba o que passei:
Um dia uma parente minha me chamou à casa dela. Estão todos dizendo que você está indo para o rio com uma galinha preta. E ainda emendou, estou dizendo isso porque gosto de você, pra você deixar de ir ao rio. Na hora somente uma raiva e também um medo tomou conta de mim. Passado alguns dias disse a ela: Porque não me defendeu já que você sabe que não sou esse tipo de pessoa? O medo não veio do fato de eu estar indo para lugares desertos com uma galinha preta, mas pelo o peso cultural que a galinha preta tem, seu simbolismo e o quanto que um comportamento desse faria aquelas pessoas me fazerem sentir mais marginal do que já sentia.
Numa tarde ensolarada, uma tia me chamou à casa dela, disse que já sabia o que estava acontecendo, que contaram pra ela e que eu deveria parar de ir ao rio. Claro que como reação, claro que não podia ir mais vezes do que já ia, mas passava de frente à sua casa que ficava numa rua mais próximo do pequeno córrego, numa mistura de alto afirmação, desafio e um jeito de falar insistentemente que minha vontade pertencia apenas a mim.
Os dias foram passando e mais pessoas me falavam, ficou frequente cruzar com algum grupo e eu ouvir baixarem a voz e começarem a rir num tom troça e satisfação. Um dia que me fez sair do controle, estava jogando sinuca com um antigo colega, quando aos poucos foram chegando pessoas, e todas me olhavam como se eu fosse algo a ser visto, medido, posicionado, e aos poucos elas foram se soltando e começaram de um jeito camuflado e falar de galinha preta, quando levantava minha cabeça, o que via eram bocas fechadas semblantes sérios, não dava pra saber que falou, e isso foi se repetindo a cada vez que me aplicava pra matar uma bola. Lá pela tantas, perdi a paciência, num acesso desmedido e impensável comecei a quebrar os tacos, batendo-os sobre a mesa, e seus risos aumentaram, claro que gastei uma nota pra pagar os tacos para o dono do bar. Mas o jeito que me mostrei foi quase como afirmar: sou sim, o cara que sobe o rio com uma galinha preta. Digo isso porque depois desse episódio a coisa ficou pior.
Era agora em todos lugares, no mercado municipal, na padaria, na sorveteria, até no posto de gasolina, onde um rapaz alto gritou: Frentista! o cara da galinha preta quer abastecer. Desci do carro e o desafiei, chamei pra briga, ele resistiu, mas eu insistir, chutei suas pernas, irado ele veio pra cima de mim. Se alguém do posto não tivesse afastado o sujeito, talvez eu fosse para o hospital. Creio que foi a pior surra que levei desde a ultima vez que meu pai me bateu por tê-lo, da mesma forma, o desafiado.
No caminho pra casa, além dos ferimentos no rosto, da raiva, da vingança imaginada que estava me atormentando, pensei que esse caso, será outro a depor contra a minha pessoa. É bruxo, mas não passa de um molenga.Para um homem, é uma situação difícil de aceitar, a cidade saber que levei uma surra. Minha prima é religiosa, de tanto ela insistir acabei aceitando seu convite pra ir na sua igreja, dizia que isso era coisa do malvado, fariam uma oração e com a força de Deus isso ia parar. Não acreditei, mas minha vontade de que isso fosse verdade me fez acompanhá-la. Claro que o entusiasmo que demonstrava quando cheguei à cidade, deu lugar a um abatimento, uma vergonha e uma vontade voraz de acabar com aquelas pessoas. Foi nesse estado de espírito que cheguei ao lugar que me salvaria da imensa agonia que estava passando. Na entrada, uma senhora bem vestida, que seria a pastora, disse que eu não podia entrar naquela igreja porque eu acreditava no mal, e a igreja era para aqueles que professava um coração puro. E sem uma reação da minha prima continuou, somente o bem passa por essa porta.
Naquele momento mesmo sem estar preparado pra voltar pra São Paulo, precisava sair dali o mais rápido possível. De pirraça ou talvez pela paixão que o lugar me despertou continuava indo ao rio e durante o caminho, todas aquelas pessoas que costumam sentar na calçada à tarde pra conversar, silenciava, mas logo que passava por elas, sentia que falavam de mim, e toda vez um constrangimento me apertava o pescoço, minhas pernas ficavam trêmulas, as vezes quando já estava no pasto, algum choro vinha e uma forma de desespero bastante peculiar inundava minha alma, que era acalmada pelo sol e pelos mergulhos que dava no rio.
Percebi que estava ficando doente, deprimido, amortecido por dentro, e uma culpa, que logicamente pensava sem sentido, porque nada daquilo que dizia de mim era real, foi me acometendo de um jeito tão pesado, que naqueles momentos de agonia, era como se minha vida tivesse acabado, eu não tinha chão e nem tinha céu, era um limbo, onde duas cordas, uma acima outra abaixo, me fixava no esquecimento, um limbo nadificado, e desse lugar eu via a vida de outra forma, seca, sem sentido, imóvel, onde eu era um cadaver a esperar o seu enterro.
Teve um momento que não conseguia mais sair de casa. Quando algum parente reclamava uma visita eu dizia que estava preparando a viagem. Mas não havia viagem a preparar, trouxe apenas uma pequena mala, e minha esposa, outra, um pouco maior, poderia ir embora em meia hora. Entretanto, algo me segurava ali, uma parte minha queria sumir, outra, apaixonado pelas florestas, pelo curral, pelos trios que se esparravam para outras fazendas, pelo rio, pelo sol sempre exuberante, pelas árvores, que nem falei delas nesse conto, frondosas, perfuradas pelo sol, que criava uma atmosfera paradisíaca, não me deixavam partir. Só de lembrar em sair dali, meu coração se partia e uma vontade de chorar tão grande tomava o lugar do meu peito. Desse modo fiquei mais duas semanas trancado dentro de casa. Desenhava, pintava, assistia algum filme, conversava horas com minha esposa. Ou preenchia meu tempo
com pequenas vulgaridades.
Então um dia acordei cedo, fui á casa de todos meus parentes, me despedi, alguns ficaram deveras tristes, os olhos não escondiam, outros, não fazia questão de esconder a indiferença ou até uma certa mágoa pelo que houve, confessando que o nome da família estava na praça. Eu disse que nunca levei galinha nenhuma. Mas você não parou de frequentar aquele lugar mesmo quando te pedimos pra não ir.
Voltei pra casa triste, mas a resolução de ir embora me deu algum ânimo. Por volta das 15 horas disse a Daniela, vou uma ultima vez no rio, quero tirar umas fotos, sentar um pouco, sentir mais uma vez a agua gelada. Carinhosamente ela riu e logo falou, vai sim, você gosta tanto daquele lugar que até fico com ciúmes, deu uma risadinha calorosa, eu ri também, dei-lhe um beijo, sai dessa vez pelo portões do fundo e desci àquele lugar que do jeito dele me falou mais sobre a vida do que a maioria das pessoa que conheci. Peguei um caminho alternativo, um caminho que me levava direto ao meu local secreto, ao meu paraíso provisório. Afastei os arames da cerca e passei para o outro lado. Como de costume, coloquei minha sunga, entrei no rio, que gostoso, pensei, na verdade acho que falei alto. De dentro da água, observando a serra distante, as árvores que pareciam mulheres bem resolvidas, ouvindo os cantos dos pássaros, alguma flor pareceu brotar dentro de mim.
Como precisava voltar pra casa logo porque viajaríamos em pouco tempo, me enxuguei, vesti minha roupa, então me lembre do curral que ficava há uns 5 minutos acima, Também quero revê, subi o rio pelas beiradas, até que chegou o barranco alto, que subindo-o, dava de cara com o curral. Como era uma subida íngreme, cheguei no topo com o ar saindo pela boca. Fiquei de cabeça baixa um tempo até recuperar o fôlego. Quando levantei a cabeça, perturbado, eu vi: dentro do curral, centenas de galinhas pretas inquietas como se esperasse alguma tragédia.