Histórias rasuradas
O homem debruçava-se sobre a mesa de tal modo, com as costas completamente
arqueadas, que a impressão que dava era que ele tentava entrar no livro que ele trazia
sob si. Vinha desempenhando com ardor a tarefa com sua borracha esverdeada já havia
algum tempo. Apagar sublinhamentos em trechos ou citações, anotações escritas à mão
ou qualquer outra coisa feita a lápis nos livros se tornara seu hobbie no decorrer dos
anos que passara a frequentar àquela biblioteca imensa no bairro da Revelação, mas não
sem antes ler atentamente a parte sublinhada ou o que foi escrito antes de apagar por
completo o que foi rasurado nos livros. Uma tarefa muitas vezes solitária, já que, de tão
grande que era o local, poucas pessoas se concentravam em apenas um lugar do prédio,
e que, devido a isto, passava-se despercebida pela maioria das pessoas.
Chegara então à página 138 de um volume do clássico livro de Richard Bach, o
livro que estava minuciosamente apagando há algum tempo, Fernão Capelo Gaivota.
Nesta página havia um trecho sublinhado a lápis que dizia assim:
“O truque, Chico, é que devemos tentar ultrapassar as nossas limitações
progressiva e pacientemente. [...]”
Especialmente neste trecho, ele parou um momento para refletir. Pousou a
borracha sobre a mesa de mogno e ponderou sobre a frase. Notou então que na página
seguinte havia outro trecho sublinhado. Leu-o em voz “alta”, já que o tom do que saia
de sua boca não passava de um sussurro:
“[...] Você se lembra do que dissemos acerca de o nosso corpo não ser mais do
que o próprio pensamento...?”
Após terminar a frase, voltou sua visão para frente e encarou uma janela que,
apesar de grande, não lhe permitia ver nada através dela. Ficou algum tempo apenas
contemplando a luminosidade que penetrava pelo vidro e pensando na ligação que os
dois trechos sublinhados tinham. Mesmo havendo uma conexão lógica entre elas, as
duas não passavam de duas falas soltas de um diálogo entre Fernão, o protagonista do
livro de Bach, e Francisco, outra gaivota aprendiz de Fernão. Porém, como as duas falas
fazem parte da instrução que o mestre Fernão tenta passar para seu aluno Chico, nada
mais certo do que haver uma interligação entre as duas ideias. A primeira é apenas um
conselho e a segunda uma lembrança de uma lição passada. Mas, ao afirmar que o corpo
nada mais é do que o próprio pensamento, ele reforça a ideia de que, com o poder de
nossa força de vontade, podemos ultrapassar as limitações de nosso corpo.
Depois destas deliberações mentais, o homem pega novamente sua borracha e
apaga as duas linhas que destacavam as citações, tomando o maior cuidado para não
amassar ou dobrar de alguma forma as páginas do livro. Feito o serviço, ainda era
possível ver as marcas que os sublinhados fizeram na folha, apenas uma leve sombra do
que já foram sete linhas que tentaram ser retas.
Ele continua sua varredura pelas páginas do livro e não encontra mais sinal de
que um lápis tenha feito alguma marca naquela edição. Então ele se levanta e vai em
direção à prateleira de onde retirara o exemplar recém apagado. Quando lá chega, o
acomoda no espaço entre duas outras cópias da história. Olha para o relógio e vê que já
passam das nove da noite. A biblioteca está prestes a fechar. Decide então levar trabalho
para casa.
A certa distância, a bibliotecária do turno da noite observa de seu balcão o
homem se encaminhando para o setor de biologia. Ele desaparece atrás de uma
prateleira e volta dois minutos depois ao campo de visão da mulher. Ele traz consigo
dois volumes grossos daquelas prateleiras. Pousa os dois no balcão da moça e expressa
um sorriso simpático para ela. Ele percebe ela enrubescer atrás de seus óculos de
armações grossas. Ela olha para baixo e nota os dois calhamaços. Um tratava
basicamente de anatomia humana. Já o outro, de patologias.
- Alguma pesquisa específica? – Perguntou a bibliotecária ao jovem homem,
sem ter coragem de lhe olhar nos olhos.
- Não. Nada disso. É por outro motivo.
- É muito material para ler. – Afirmou ela em um murmúrio.
- Vou ler só o que for importante deles.
- Mas tudo o que está neles é importante. – E encarou-o.
- Sim, mas nem tudo é destaque.
Ela ficou sem entender. Também não ousou pedir explicações ao homem. Pegou
os dois livros e digitou alguma coisa no computador após conferir algo dentro deles.
Depois os entregou a ele e lhe disse:
- Eles devem ser devolvidos na segunda-feira.
- Sem problemas. Até mais ver.
Ele então se vira e caminha lentamente em direção à porta de saída da biblioteca.
Ao sair, se vê sozinho no estacionamento em frente ao prédio, praticamente sem carros
parados. Entra em seu carro estacionado ali e acomoda os livros no banco do passageiro.
Dá a partida no carro e ruma para sua residência.
A tímida bibliotecária acompanha com a vista o carro sumir em meio aos outros
veículos em trânsito na Avenida Mirante.
Enquanto dirige pela Marginal Contorno, já bastante afastado do bairro da
Revelação, o homem se pega pensando novamente nos versos escritos a lápis em um
canto da página daquele livro de poesias que ele leu certa vez enquanto desempenhava
suas funções de apagar rasuras:
“Tenho em mim coragem, de dar fim a esta vida? / Já que minha existência é
assim tão dolorida? / Porém, receio em concluir minha despedida / Pois sei que será
também a morte uma existência sofrida”
Não seria problema algum para ele ler aquela estrofe rabiscada em um local tão
apropriado, porém logo em seguida completamente apagada a borracha, se não fosse
pelo que estava escrito logo abaixo, como que assinando o pequeno texto sem
identificar de forma alguma o seu autor:
“Qualquer dia destes.”
Esta frase solta, sem conexão alguma com o poema, estava repleta de
significado. Ao menos assim pensava aquele homem comprometido em fazer sumir
qualquer tipo de resquícios deixados em livros que ele pudesse encontrar. Aquelas três
palavras poderiam significar algo terrível, inevitavelmente o fim de uma vida. Ele acaba
por se sentir impotente ao pensar naquele cenário, de que talvez, alguém pudesse acabar
com a própria vida a qualquer instante, e ele nada poder fazer.
Às vezes, pensava em desistir de seu “ofício”. Preocupava-se em qual seria o
próximo grito mudo de ajuda escrito à caligrafia que iria se deparar. Por mais que não
houvesse a certeza de nada daquelas suas conjecturas, as anotações, comentários e às
vezes até mesmo o conteúdo dos livros sublinhados lhe podiam causar certo arrepio.
A curiosidade pelos seus achados diários, entretanto, só aumentava a cada nova
leitura. Esse em especial, fora o que mais lhe marcara e que não lhe saía da lembrança.
Chegando a sua casa, ele estaciona o carro no espaço da garagem e afasta
qualquer pensamento referente àquela lembrança do livro de poesias. Ao entrar em sua
morada, ele prontamente acende as luzes do ambiente, revelando o que há no cômodo.
Basicamente, livros. Até onde se pode ver, há livros empilhados, enfileirados,
encaixotados ou abastecendo prateleiras diversas. Todos adquiridos ao longo dos anos
em antiquários ou revendedores de usados, livrarias à moda antiga e onde mais se
vendesse um livro que alguém pudesse ter feito uso do lápis em suas páginas. Ele
adquirira este outro passatempo: o de garimpar tesouros escondidos.
Vez ou outra acabava se deparando com uma dedicatória nesses livros que
adquiria. Algo que lhe fugia ao controle, pois nada poderia fazer quanto à tinta de
caneta esferográfica, caneta tinteiro ou afins. Não se importava tanto, pois as histórias
que imaginava conter naquelas palavras de carinho escritas para alguém sempre o
distraiam. Mas, claro, o que sempre lhe interessava nos livros era apenas o que se
poderia remover das páginas.
Esta fixação por “restaurar” uma obra a sua originalidade surgiu ainda na
adolescência. Muitos falam que não suportam uma dobradura na página de seu livro
favorito, que se utilize a orelha do mesmo para marcar páginas ou coisas neste sentido.
Mas ele desenvolvera uma aversão quase patológica as marcações de lápis. Um TOC
nunca diagnosticado.
Deixando os volumes de biologia, que ele trouxera consigo da biblioteca,
acomodados em uma escrivaninha no canto do cômodo, o homem tratou logo de
verificar o quão avançado se encontrava em outro livro cujo qual vinha trabalhando há
algum tempo.
Tratava-se de uma clássica obra de Machado de Assis, Dom Casmurro, onde o
homem já se encontrava na parte em que Bentinho suspeitava de Capitu. Mas por mais
que a história, em boa parte, envolva um possível triangulo amoroso entre o
protagonista de Machado, a dona dos “olhos de ressaca” e o amigo do casal possa
interessar bastante a quem os lê no momento o homem estava com seus esforços
voltados para remover todas as anotações e comentários ao longo das páginas do
volume.
A certa altura da noite, um comentário chamou-lhe a atenção em particular, por
se apresentar de maneira distinta aos demais que ali se encontravam. No canto inferior
da página, quase como uma nota de rodapé semi-escondida, ele se apresentava da
seguinte forma:
“Cego era Bentinho, que enxergava mais que deveria.”
Aquela nota o surpreendeu de imediato. Por se tratar de um comentário pessoal,
ele jamais esperava encontrá-la rabiscada entre tantas outras notas técnicas e lembretes
para estudo.
Após remover o comentário da página, ele pensou em como poderia ser a pessoa
que fizera a anotação. Seria ela homem ou mulher? Jovem ou não? Qual seria sua visão
de mundo em relação a outros assuntos?
Nem ao certo poderia afirmar se esta pessoa já teria lido muitas vezes o Dom
Casmurro para tecer tal comentário, ou se simplesmente já tirara a conclusão de forma
precipitada. O máximo de informações que ele tinha naquele momento era, que o dono
da nota que já não mais existia nas páginas daquele exemplar, possuía ressentimento em
suas palavras.
Se deixando levar por pensar na pessoa que escrevera a lápis no livro em que ele
apagava no momento, o homem voltou novamente a refletir sobre as histórias por trás
daquilo que ele eliminava à borracha. Acabou por pensar nos versos daquele livro de
poesias que ele se lembrou ainda no interior de seu carro, e na assinatura enigmática de
seu autor.
Algo como uma correnteza o levando em direção à foz do deságue, acaba o
guiando até onde se encontrava o livro de poesias recostado. Ele pega o exemplar e o
folheia em vão, está limpo como se fosse original. Exceto pela dedicatória em sua
contracapa.
“Para minha filha amada, que a sua paixão pelas palavras lhe guie neste seu
novo momento em sua vida. De seu pai. 25 de setembro de 2005.”
Ele não se atentara antes a data da dedicatória, mas o livro não tinha nem dois
meses que havia sido assinado e destinado para a filha daquele homem. Talvez por que
havia lido a dedicatória antes mesmo de descobrir a estrofe em meio aos outros
comentários feitos a lápis.
Vendo ali que poderia então haver uma chance de encontrar a dona anterior do
livro, que agora ele deduzia ser também a autora dos versos apagados por ele, o homem
passa a fazer um esforço tremendo para tentar se lembrar onde adquirira o exemplar
daquele livro de poesias.
Mas já se aproximava da madrugada, e o cansaço não permitia que ele
raciocinasse direito. O homem desiste de tentar descobrir a origem daquele livro e se
deixa deitar em sua cama, logo adormecendo.
Pela manhã do dia seguinte, já descansado pela noite de sono e pensando com
mais clareza, o homem consegue se lembrar de que aquele livro em especial veio de um
bazar feito em uma igreja no centro da cidade. Ele então termina rapidamente o seu café
da manhã e já segue caminho para a referida igreja.
Chegando ao seu destino, o local está coincidentemente realizando outro bazar.
O homem adentra as pesadas portas de madeira da antiga construção e é recepcionado
por uma senhora com um sorriso simpático no rosto:
- Bom dia! Seja bem vindo ao nosso bazar.
- Bom dia. Gostaria de saber se vocês poderiam dizer quem são as pessoas que
doam todas essas coisas? – Ele foi direto ao ponto.
- Seria impossível ter conhecimento de todas elas, meu rapaz. Por que a
pergunta? – A senhora estava interessada quanto à curiosidade daquele jovem.
- Este livro que eu comprei aqui há pouco tempo. – Ele mostrou o livro de
poesias a ela. – Queria saber quem foi seu dono anterior.
- Desculpe. Mas não posso lhe ajudar com isto. – A senhora pensou por um
instante, antes de prosseguir. – Porém posso lhe dizer quem é a autora deste livro.
Ele precisou esperar até o turno da noite para retornar à biblioteca do bairro da
Revelação. Porém agora, com uma missão muito mais importante do que simplesmente
apagar rasuras em seus livros.
Dirigiu-se até o balcão, onde se encontrava a postos aquela bibliotecária tímida
da noite anterior. Com os livros de biologia em mãos, seu pretexto era o de devolver os
volumes com antecedência apenas. Entretanto, ele havia preparado uma surpresa para a
moça.
Eles se cumprimentaram com sorrisos discretos, enquanto o homem entregavalhe os livros. A bibliotecária checou o primeiro volume e digitou algo em seu
computador. Repetiu a operação para o segundo. Quando foi mover os volumes para
uma bandeja com a etiqueta escrita “devolvidos” ela notou que havia um terceiro livro
ali, bem menor que os outros dois.
Ela se espantou na mesma hora. Após isto ficou sem reação. Não conseguia
encarar o homem. Ele então falou:
- Acredito que este livro lhe pertença.
- Como você o encontrou? – Ela conseguiu expressar.
- Eu comprei em um bazar de igreja.
- E você o leu?
- Como eu já lhe disse antes, só o que lhe era destaque.
Ela conseguiu o encarar por fim. Aparentemente, compreendeu o que aquele
enigmático homem queria dizer. Como relâmpagos em seu cérebro, as anotações que
fizera naquele livro após sua publicação vieram a todo o momento até ela se recordar
dos versos que escrevera em seu momento de desespero.
Em um ato de pura agonia, ela folheou o livro. Procurou de forma desvairada
aquela estrofe, porém só encontrava nas páginas do volume o que a gráfica havia
publicado. Por um curto período de tempo, ela sequer lembrava-se do que havia escrito.
Mas, ao se lembrar da dedicatória, retornou calmamente para a contracapa do
exemplar. Olhou fixamente para a anotação de caligrafia e depois passou os dedos da
mão sobre a mensagem.
- Eu só queria me livrar do livro na época, sabe? – A bibliotecária falou após um
momento. – Livrar-me de tudo que me lembrasse dele. De meu falecido pai.
- E depois iria acabar com o seu sofrimento de uma vez por todas? – Ele
questionou.
- O que quer dizer com isto?
- “Qualquer dia destes”. Tudo o que é destaque se lembra?
- É você tem razão. – Ela se envergonhou.
- Pelo menos agora você tem isto de volta. – Ele empurrou o livro de leve sobre
o balcão em direção a ela.
- Você está falando sério?
- Só me prometa que, mesmo sendo de sua autoria, vai mantê-lo original.
- Eu prometo. – A bibliotecária disse em meio a uma risada.
Dias se passaram após o encontro do homem e da bibliotecária. Ele permanecia
com o seu passatempo em apagar as rasuras feitas nos livros daquela biblioteca enorme
no bairro da Revelação. E ela em seu ofício no turno da noite.
Vez ou outra quando o homem se sentia completamente sozinho naquela imensa
biblioteca, ele baixava a borracha, escolhia um livro e simplesmente ia para a primeira
página dele. E, sem se preocupar com as passagens rasuradas nele, passava a lê-lo.
Como quando havia trazido consigo um exemplar de O Pequeno Príncipe recém
adquirido com ele para a biblioteca. Ele deixou de lado os outros livros e passou a ler os
trechos iniciais de Antoine de Saint-Exupéry:
“Certa vez, quando tinha seis anos, vi num livro sobre a Floresta Virgem,
‘Histórias Vividas’, uma imponente gravura. Representava uma jiboia que engolia uma
fera [...]”.
E assim lia cada livro escolhido até o fim.