A vizinhança
Sinopse
A vizinhança
Márcia Miranda Rodrigues
A narrativa é ambientada em uma vizinhança de uma cidade grande. Em meio a apreensão e o medo impostos pelo alastramento da pandemia pelo mundo, o isolamento social é a medida mais eficaz para evitar a contaminação pela Covid-19. É nesse cenário de uma guerra invisível que se desenrola a nossa história. Ela conta sobre a vida cotidiana da família de Rui, um saxofonista, que durante o período de quarentena precisa lidar com esta nova configuração de convivência social e familiar. Como ele e a mulher, Mafalda, enfrentam os desafios de cuidar dos quatro filhos, dois adolescente e dois ainda pequenos, e da casa, mantendo as medidas de segurança necessárias para evitar a contaminação pelo vírus. É dentro desse contexto, que a vida cotidiana passa a ganhar novas e interessantes dimensões para Rui, Mafalda e os filhos. Mas um fato estranho ocorre quando uma vizinha, Dona Ribeiro, conhecida como a poetisa do bairro, muito querida por todos, é contaminada pela doença e fica em estado grave no hospital. Porém, todos passam a ver a senhora pela vizinhança e isso faz eles temerem pela saúde de seus filhos e de todos. Então, começa uma corrida para desvendar o mistério que surge e manter a família em segurança. Durante o desenrolar do fatos, as personagens vão descobrir novas formas de ver a vida e o mundo que os redeia, saber que nem tudo é o que parece ser e aprender o valor do perdão e do amor.
A vizinhança
Márcia Miranda Rodrigues
I
As palmas se multiplicavam nas janelas dos apartamentos, ritmadas pela cantoria de vozes afinadas e acompanhadas pelas preces entoadas por aqueles que se armam de fé, na esperança de uma cura milagrosa. Coisa bonita de se ver em tempos de incerteza e medo da morte, que passa sorrateiramente ao lado, a espera de um desavisado, que escapa por um golpe de sorte de um espirrar atrasado ou adiantado. A esta hora, um dos vizinhos, munido de um saxofone, fazia um solo da sacada de seu apartamento, enquanto todos escutavam com prazer, aquele espetáculo de solidariedade e união.
Ao findar a apresentação, outro som chamou-lhes a atenção, uma breve sirene se ouviu e uma ambulância parou a porta de um dos prédios, dela saíram três pessoas, tão aparamentadas com seus fatos de proteção que mal se podiam ver os olhos. Puxaram de dentro da carrinha uma maca e a levaram para dentro do prédio; não demorou muito para que voltasse, agora ocupada por uma senhora com dificuldades para respirar, ela ofegante olhou para as pessoas nas sacadas, que estavam agora em total silêncio, parecia que a moribunda fitava cada um nos olhos com um olhar imperativo, de uma ordem absoluta: "Fiquem em casa!" Colocaram-na na carrinha e partiram o mais depressa que puderam.
Deste ponto, cessou-se a cantoria e todos se recolheram às suas casas, ouvia-se só o murmúrio das preces.
Aquela senhora era a Dona Ribeiro, bastante conhecida na vizinhança, pois gostava de uma boa prosa. Todas as tardes se reunia com as amigas Mariana e Inês em um café nas proximidades de casa e lá ficavam várias horas a falar sempre dos mesmos assuntos: netos, novelas e filhos. Das três, Ribeiro era a única que nunca falava da família, nunca casara e nem tivera filhos, morava sozinha há muito tempo, então seu assunto favorito eram as novelas e as suas poesias. Mas já havia três semanas que não se viam, desde que fora implantado o isolamento social como medida para evitar o alastramento da pandemia que assolava o mundo todo. Todos foram informados da necessidade de permanecer em casa, as saídas passaram a ser controladas. Mariana não saia mais de casa, os filhos não a deixavam, por vezes ainda tentou escapar, mas logo foi descoberta e Inês, que também morava sozinha, foi ficar de quarentena na casa da filha para ser melhor cuidada. Dona. Ribeiro, como não tinha parentes, isolou-se em casa e durante essas três semanas não se tinha notícias dela.
No prédio em frente ao de Dona Ribeiro, morava Rui, o nosso saxofonista. Ele era Professor de música em uma Faculdade da cidade, casado com Mafalda, tinha quatro filhos: Filipe, de 17 anos, João de 15 e Pedro e Luís, de 5 anos, que chegaram quando os pais já não pensavam mais em aumentar a família. Por causa dos gêmeos, Malfada teve que deixar o trabalho de enfermeira e se dedicar inteiramente à família. Rui depois de algumas horas voltou à varanda e se pôs a olhar para a casa da pobre vizinha, que ele julgava já estar mais "pra lá que pra cá" pelo estado como foi levada pela ambulância. Sentiu-se culpado por um instante: "Como não percebi o que se passava naquela casa, com aquela senhora?", pensou ele. Na verdade, Rui sabia que não tinha culpa, assim como todos, foi obrigado pelo estado e pela prudência a ficar em casa a cuidar de si e dos seus, tentava aliviar o seuestresse e dos vizinhos com o que sabia fazer melhor, tocar. Mas ainda assim, pensou outra vez que poderia ter observado alguma coisa se prestasse mais atenção, então, debruçou-se na mureta da varanda, que era comprida e bem agradável, a olha a casa vazia e o céu, nessa noite, estrelado.Estava mesmo uma noite agradável, boa para ver as estrelas que brilhavam alheias ao cenário de guerra que se desenhava ao redor do planeta. Lá longe, sem fazer ideia do que aqui se passava, formavam o cenário perfeito para um dos singelos poemetos de Dona Ribeiro:
"Desliga o candeeiro,
Meu Bem!
Que São Pedro fechou as torneiras,
soprou seus travesseiros
e soltou os pirilampos no céu.
Vem!
Senta-te cá,
ao pé de mim.
Vem fazer-me um cafune,
debaixo desse céu se fim."
II
Amanheceu na casa de Rui e a correria começou. A mesa era bonita de se ver pela manhã, apesar do barulho dos meninos, era uma família rica em amor. Mafalda se desdobrava para atender a todos os pedidos, aos choros dos pequenos, sempre armada com um pano e um spray de álcool gel na mão. Ela havia desenvolvido uma pseudosíndrome do Transtorno Obsessivo Compulsivo por limpeza, era como ela gostava de chamar o hábito que adquiriu de alertar a família para a importância de manter as regras de prevenção contra o vírus, e elas estavam bem expressas em um papel impresso e pendurado no hall de entrada, que assim dizia:
• Lavar as mãos frequentemente por 20 segundos com água e sabão;
• Evitar tocar nariz e boca;
• Cobrir o nariz e a boca com um lenço ou o cotovelo ao tossir e espirrar;
• Manter as unhas cortadas;
• Higienizar objetos pessoais (óculos, telemóvel, relógios, etc.) com álcool gel;
• NUNCA, NUNCA SAIR SEM LEVAR MÀSCARAS E LUVAS!
Na verdade, o mini cartaz era mais uma proforma, pois a prática ditada por Mafalda era bem mais rígida, ninguém saia de casa sem a autorização e vistoria completa feitas por ela. Por esta razão, os únicos que ainda conseguiam sair era o Rui, que precisava fazer as compras para casa uma vez por semana e Filipe, que fazia parte de um grupo de jovens da igreja da freguesia. Eles prestavam serviço às pessoas mais idosas e de grupo de risco que não podiam sair de casa.
Aliás, tanto Rui quanto Filipe já estavam a se preparar para sair. Filipe saiu primeiro, precisa chegar cedo à igreja para resolverem os itinerários do dia. Ele pegou uma sandes e saiu às pressas, sob os protestos e a inspeção da mãe. Na igreja, ele soube que iria trabalhar na sua vizinhança, ficou contente pois conhecia quase todos os vizinhos. Então partiram em grupos. De volta a sua rua, ele foi deixar os panfletos no prédio em frente ao seu, juntamente com uma amiga, Ana. Eles entraram e começaram a distribuição, afixavam no quadro de aviso e colocavam por debaixo das portas. Ana foi para o segundo andar e Filipe ficou no primeiro. Ele parou em frente ao apartamento de Dona Ribeiro e tocou a campainha, o rapaz não soube do ocorrido na noite anterior, a mãe não quis que os filhossoubessem que uma pessoa conhecida deles estava muito doente ou mesmo pior por causa do vírus. Ele tocou novamente a campainha, mas ninguém atendeu. Então, ele resolveu colocar o panfleto por baixo da porta e assim fez, mas o papel foi enviado de volta pelo mesmo caminho, ele achou estranho e o enfiou novamente por baixo da porta e de novo o teve de volta, agora Filipe riu com um ar de espanto e chamou pela senhora:
_ Dona Ribeiro, Sou eu, Filipe. Vim saber se a senhora precisa de alguma coisa! Indagou o rapaz.
_ Não quero nada! Vá embora! Falou alguém de forma ríspida. Ele achou estranho, tal resposta vinda de uma senhora tão simpática como Dona Ribeiro, mas imaginou que deveria ser o estresse da quarentena. Agachou-se e pôs o papel outra vez pelo vão da porta, que dessa vez não voltou mais, ele sorriu e continuou a sua peregrinação pelos andares.
Em casa, Rui foi ajudar a esposa a dar banha nos gêmeos, missão trabalhosa e demorada, porém divertida. No quarto, João buscava alguma live fixe na internet para se distrair. Depois de quase duas horas entre banhar e vestir os miúdos, eles terminaram e Rui pôde preparar-se para ir às compras. O supermercado era distante trezentos metros da casa, percurso que Rui fazia a pé. Nessas últimas semanas, ir ao supermercado era para ele sinônimo de liberdade, nuca havia sentido tanto prazer em ouvir a mulher dizer que ele precisava ir às compras. Fazia o caminho a passos curtos, sem pressa de ir ou vir, olhava os jardins cuidados com esmero, os prédios, a praceta com minuciosidade; descobriu um cenário novo dentro daquele velho quadro, visto aos relances por de trás dos vidros do carro há tantos anos; nos jardins ouviu o canto dos pássaros e pensou: "como alguém consegue manter os animais presos em gaiolas? Nós humanos estamos a enlouquecer só de ficarmos confinados em casa! E as pobres pessoas que estão enfermas, sozinhas, sem poderem receber a visita de seus parentes? Triste! Benditos sejam os profissionais de saúde que hoje são nossos bravos soldados a lutar nessa guerra invisível". Depois desta caminha contemplativa e reflexiva, ele chegou as proximidades do supermercado e viu que a fila, por sorte, estava pequena, somente quatro pessoas, pôs-se a dois metros da última e aguardou a sua vez de entrar.
Já dentro do estabelecimento comercial, Rui seguiu para as frutas, colocou laranjas, limões, maçãs e tantas outras coisas que a esposa pedira; depois lembrou que não poderia esquecer da lixivia, repetidas vezes lembrada por Mafalda. Atravessou, então, para o corredor de materiais de limpeza, estava a uma ponta do corredor, quando percebeu no outo lado ao fundo uma senhora conhecida, era a Dona Ribeiro! "Mas como pode?" Pensou ele. E sem entender, decidiu chamá-la:
_ Dona Ribeiro?, a mulher olhou para ele, mas não disse nada, virou de costa e foi-se embora. Rui
ficou ainda mais sem entende a situação, mas pensou que talvez a vizinha não estivesse tão mal como ele pensava ou, se calhar, ele a confundira com outra pessoa, afinal as máscaras escondem parte do rosto. Mas a semelhança era grande demais, mesmo com máscara, Dona Ribeiro era de um tipo físico robusto, fácil de reconhecer, com alvos cabelos brancos em caracóis, parecia um anjo meiguiceiro na terra.
Enquanto isso, Filipe e Ana haviam terminado de distribuir os panfletos e já somavam algumas listas de compra para fazer a seguir ao almoço.
_ Estou bué cansado e cheio de fome! Exclamou Filipe ao passar a mão sobre a barriga.
_ Eu também. Hoje tivemos bué pedidos de supermercado e farmácia. Temos que nos apressar para darmos contar de tudo isso ainda hoje!
_ Tens razão, Ana! Encontro vocês aqui, depois do almoço. Adeus!_ Até mais, Filipe! Filipe queria convidar Ana para almoçar em sua casa, mas não podia, eram normas para evitar possíveis contágios. Os dois despediram-se e ela seguiu de volta com o restante do grupo.
Ana não demorou a chegar à casa, também morava perto da igreja. Foi direto para o banho, não poderia descuidar, tinha a avó hospedada. Avó e neta eram muito carinhosas uma com a outra, mas durante os dias de quarentena, não podiam abraçar e dar os beijinhos de sempre, ao contrário, falavam-se de longe e sempre de máscara, por causa do serviço de auxílio que prestava para as pessoas do grupo de risco. As duas evitavam estar próximas uma da outra e se falavam por vídeo conferência, uma novidade para Dona Inês, que prometeu continuar a usar quando voltasse para sua casa.
Nunca uma palavra fez tanto sentindo para uma pessoa como fez a palavra windows para Dona Inês. Em verdade, descobrir a web foi para ela um abrir de janelas e portas para um mundo fascinante.
Tão rápida foi sua integração às redes sociais, que parecia já conhecê-las há muito. Foi ao olhar uma bela foto no Instagram que ela lembrou de um poemeto giro da amiga, Poetisa, era como chamava Dona Ribeiro. Inês escreveu o poema como legenda daquela imagem de um lindo girassol, iluminado pelo sol. O poema dizia assim:
"Gira o sol
Que gira-mundo!
giro!
gira o girassol
feliz!
a banhar-se na luz
que alumia o mundo,
nos mornos rastros
rasteiros
do gira-mundo"
III
À hora do almoço, todos estavam em casa, a mesa cheia era a alegria e o desespero de Mafalda, mais ainda nesses dias de quarentena em que as crianças não podiam ir à escola. Filipe contou o que
havia ocorrido no apartamento da vizinha, disse que achou estranha a maneira como ela agiu, não parecia a mesma Dona Ribeiro, sempre tão simpática e atenciosa. Rui, ao ouvir a história do filho, lembrou-se do ocorrido no supermercado e então disse:
_ Então, era mesmo a Dona Ribeiro! Mafalda olhou os dois com ar de espanto e disse:
_ Do que vocês estão a falar? Dona Ribeiro está doente no hospital! Exclamou ela a duvidar dos dois.
_ Como doente no hospital? E quem falou comigo hoje na casa dela? Perguntou surpreso, Filipe.
_ É possível que ela tenha tido alta do hospital ontem, porque eu a vi hoje no supermercado, tenho certeza! Talvez o caso dela não fosse tão sério como parecia! Ponderou Rui.
_ Não estou a entender nada, mas também não tenho tempo agora, preciso apressar-me! Disse Filipe, ao levantar-se da mesa para ir às compras da tarde. Mafalda repreendeu-o como de costume por estar sempre a correr, mas logo voltou-se ao marido para saber do ocorrido no supermercado, o que Rui a relatou com detalhes._ Estranho! Vou ligar à Maria, ela trabalha no hospital, deve saber sobre o caso da Dona Ribeiro. Disse ela ao marido. Ele concordou, mas os dois logo se distraíram com o choro de Pedro, um dos gêmeos:
_ O que se passa, Pedro? Porque choras? Perguntou a mãe.
_ Não vamos ver o avô e a avó nunca mais! Disse o menino aos prantos.
_ Oh, filho! Quem te disse isso? Claro que vamos ver o avô e avó. Logo que os bichinhos forem embora, vamos à casa dos avós. Mafalda era uma "mãe galinha", dessas superprotetoras, por isso tentava minimizar com eufemismos tudo o que se passava fora de sua casa.
_ Não vamos não, eles vão morrer, porque o João disse que os bichinhos são maus e fazem mal para o avô e a avó! Ao ver o irmão chorar, Luís também se pôs a chorar, mais por solidariedade ao irmão do que por entende o que se passava. A mãe diante de tal situação entendeu que não poderia mais inventar estória para os pequenos e chamou o marido para ajudar a explicar a situação, pois o marido não concordava muito com a atitude da esposa de tentar esconder totalmente a verdade dos filhos, ainda que fosse para protegê-los.
Rui agachou-se, pegou Pedro e Luís em um grande abraço, passando para os filhos calma e
confiança, em seguida começou a explicar as coisas de uma forma que as crianças entendessem e não
sentissem medo:
_ Pedro, lembra quando você ficou dodói e teve febre? Pedro balanço a cabeça afirmativamente:
_ Lembra que o Luís precisou dormir com os seus irmãos, Filipe e João, para não ficar dodói também?
Indagou novamente o pai, ao que o filho respondeu:
_ Eu lembro, pai! Eu lembro, mas o mano veio dormir comigo à noite, para eu não ficar sozinho, eu
tenho medo de dormir sozinho! Recordou o miúdo.
_ Isso mesmo, Pedro! O Luís veio à noite para o quarto para que você não ficasse sozinho e acabou porficar doente também. Lembra?
_ Sim, pai!
_ O mesmo acontece com o avô e a avó!
_ Mas não estamos doentes, pai! Retrucou o filho.
_ É verdade! Mas se formos à rua, podemos ficar. E se formos à casa dos avós, eles também podem
ficar.
_ Mas a mamãe deu remédio para mim e para o Luís e ficamos bons! Insistira o menino.
_ Também é verdade! Mas a mãe não tem remédio para esses bichinhos, por isso não podemos sair e nem visitar os avós por enquanto.
_ Mas, pai, nós podemos comprar na farmácia!
_ A farmácia ainda não tem um remédio para fazer as pessoas ficarem boas logo, por isso ficar em casa. Entenderam?
_ Sim, pai! Mas ainda sinto falta dos avós! Falou Pedro com um ar triste. Rui também ficou triste pelos filhos, mas uma ideia lhe surgiu.
_ Não podemos ir à casa dos avós, mas podemos falar com eles de outra maneira.
_ Como, pai?
_ Vamos ver os avós pela televisão!
_ Na televisão?? Olharam os dois surpresos para o pai.
_ Sim! Os meninos ficaram tão animados com a ideia do pai que logo enxugaram as lágrimas e
puseram-se a correr para a sala a ligar a televisão. O pai buscou o computador e ligou-o ao aparelho de TV, sempre com o auxílio dos gêmeos, que a essa altura estavam excitados com a novidade. Depois de tudo preparado, ele fez uma chamada por vídeo conferência para os seus pais. Tamanha foi a alegria dos meninos em ver os avós na televisão, que se fartaram de rir em uma longa e animada conversa, esses também se encheram de felicidade com as estórias dos netos. No dia seguinte, seria a vez dos pais de Mafalda, assim os pequenos passaram o resto tarde a fazer desenhos e selecionar brinquedos e jogos para mostrar aos avós no dia seguinte. Mafalda também ficou feliz com a ideia do marido e tirou disso tudo uma grande lição, informar os filhos de forma correta era a melhor medida de proteção que poderia tomar.
Não muito longe dali, estavam Filipe e Ana a aguardar para entrar na farmácia para comprarem os medicamentos que lhes foram pedidos. Nesse instante, saiu da loja um senhor de máscara e viseira, como a maioria dos que ali estavam, ele viu Ana e foi em direção a ela:
_ Olá, Boa tarde! Você não é a Ana, neta da Dona Inês? Ana sem se recordar do senhor, respondeu que sim. Ele então se apresentou.
_ Eu sou Nuno, filho da Mariana. Você não deve se lembrar de mim, a última vez que me viu eras
pequenina. Como vai a sua avó?
_ Olá, Senhor Nuno. Minha avó vai bem, obrigada!
_ Folgo em saber. Já minha mãe não está assim tão bem, acabou por pegar o vírus. Nem sei como! Por isso, estou aqui para comprar os produtos de que necessita. Ela precisou de ir para o hospital, está isolada, não temos como visitá-la. O homem segurava, com as mãos calçadas de luvas, um grande saco com produtos geriátricos.
_ Estimo as melhoras dela! Senhor Nuno, eu faço um serviço de apoio às pessoas que não podem sair de suas casas, caso necessite de alguma coisa, entre em contacto comigo. Tome um de nossos panfletos, atrás há meu número de telemóvel, mantenha-me informada sobre o estado de Dona Mariana, se faz favor; ela e minha avó são muito amigas.
_ Obrigado, menina. Farei isso!
Ana ficou preocupada com a notícia sobre Mariana, pois sabia que a avó estimava muita aquela amiga. Pensou como iria dar a notícia a avó. Mal sabia Ana que também já tinha um amigo que a estimava muito e estava bem ali à sua frente, a perceber tudo o que ela pensava. Filipe olhou o ar de
preocupação da rapariga e disse-lhe que não se preocupasse, pois tudo iria correr bem com aquela senhora. Ana sorriu, um pouco emocionada, com a atenção do amigo. Mas não pôde deixar de pensar sobre tudo o que se passava no mundo e em todas as pessoas que enfrentavam uma batalha pela própria vida, nessa guerra sem bombas ou trincheiras. Ela voltou-se para Filipe e suas reflexões soaram quase como um poema:
_ Em um ato tão simples há tanta força de vida! Algo invisível, mostrou-nos uma riqueza infinita! A
vida é ar, é respirar...
IV
A tarde passou, apesar da correria, foi uma boa tarde, pelo menos para Filipe. Ele estava a gostar muito da companhia de Ana que já ficava triste em ter de se despedir dela, mas assim foi mais um dia. Agora só se veriam na próxima semana. Os trabalhos na igreja eram feitos apenas três vezes por semana, para que os jovens não ficassem muito expostos.
Em casa, depois de fazer a total desinfecção, Filipe sentou-se para jantar com a família. Logo começaram a falar sobre o que fizeram ao longo do dia. Foi quando Mafalda lembrou que havia esquecido de ligar para a amiga, Maria:
_ Ah! Esqueci-me de ligar para a Maria. Vou fazer isso já. Falou Mafalda ao levantar-se para apanhar o telefone.
Ao telefone Maria ficou surpresa com a chamada da amiga àquela hora, temeu que algo estivesse a acontecer com ela ou alguém da família, mas foi logo tranquilizada por Mafalda. Esta não demorou a questionar sobre a vizinha:
_ Maria, saberias informar-me sobre uma paciente que deu entrada ontem nesse hospital, ela chama-se Ribeiro?
A amiga, surpresa, respondeu com outra pergunta:
_ Mas, então, era tua vizinha?
_ Como era? Ela morreu? Questionou nervosa.
_ Morreu não. Fugiu! Disse, Maria.
_ O quê? Como?
_ Fugiu de madrugada. Já tomamos as providências necessárias, mas ainda não conseguimos encontrá-la. Tu sabes aonde ela está? Ela é um perigo para todos! Se souberes diz-me, Mafalda.
_ Bem, Maria! Não estou certa, mas acredito que ela esteja de volta à casa, meu marido pensa tê-la
visto hoje no supermercado e meu filho disse ter falado com ela em casa.
_ Que perigo, Mafalda! Teu marido e teu filho devem estar contaminados pelos vírus. Eles devem ficar isolados.
_ Não, Mafalda. Eles não tiveram contacto direto. Meu filho disse que ela não lhe abriu a porta e o Rui a viu de longe.
_ Menos mal, mas mantenham-se distante dessa senhora. Não saiam de casa até que a encontremos.
Vou informar a secretaria do hospital, mas há algo de estranho porque eles foram ontem a à casa dela, mas não a encontraram.
_ Se ela fugiu, deve ter ido para outro lugar e voltou para casa pela manhã. Disse, Mafalda.
_ É provável! Concordou, Maria.
_ Mafalda, olha, agora tenho que tratar deste assunto. Agradeço-te pela informação. Beijinhos.
_ Está bem. Beijinhos e adeus.
_ Adeus!
Mafalda desligou o telefone e correu aflita para a sala de jantar.
_ Rui, Rui! Gritou a mulher.
_ O que se passa, Malfada? Perguntou Rui nervoso.
_ Era mesmo ela! Era mesmo ela!
_ Quem? Perguntou Filipe, sem entender o que se passava.
_ Vocês viram mesmo a Dona Ribeiro. Ela fugiu do hospital ontem à noite! Falou Mafalda ao levar as mãos à cabeça, com uma expressão nervosa.
_ Fugiu do hospital? Indagou Rui com espanto._ Isso não faz o menor sentido, Mafalda. Aquela senhora no estado em que estava não teria condições
de ir a lugar nenhum. Disse Rui incrédulo.
_ Acabei de confirmar tudo com a Maria. Ela disse para ficarmos longe da Dona Ribeiro e que se possível não saíssemos de casa até que a encontrem ou todos corremos perigo de sermos contaminados pelo vírus! Falou Mafalda, ao apoiar-se na mesa com ar imperativo.
Rui achou estranha a história contada pela esposa, mas não a contrariou, pois estava certo de que a mulher que viu no supermercado era Dona Ribeiro e ainda havia a situação ocorrida com o Filipe na casa da vizinha. Dessa forma, decidiu que ninguém sairia mais de casa até que tudo estivesse resolvido. E assim a notícia espalhou-se pela vizinhança.
Preocupado com Ana, Filipe resolveu ligar-lhe a informar sobre Dona Ribeiro. A amiga agradeceu, disse que manteria a família informada sobre o ocorrido, mas que não diria nada à avó, pois ficara muito triste ao saber da saúde de Mariana, era melhor para ela não ter mais essa triste . Porém, Ana repassou a informação ao grupo da igreja, para que eles tivessem e protegerem-se e também ajudarem a encontrar a paciente fujona.
A notícia logo espalhou-se, foi o assunto no whatsapp naquela noite. Todos sabiam de alguém que viu ou teve contacto com a Poetisa, houve até quem a visse a recitar seus poemas em um banco do jardim próximo ao café onde costumava ir todos os dias. Eis aí o poder incontestável do contar, a ser atualizado com sucesso, no fluídico canal de rede social.
V
No dia seguinte, Mafalda ligou para a amiga para saber se a vizinha havia sido encontrada, mas a amiga informou que a equipe enviada não a encontrou em casa. Mafalda preocupada colocou João de vigília na varanda, a tomar conta da entrada do prédio. Este, contrariado, sentou em uma cadeira,
esticou as pernas sobre um puff que estava a sua frente, com telemóvel e headphones, recostou-se e
pôs-se a ouvir músicas, sem dar importância às recomendações da mãe.
No entanto, tocam a campainha do apartamento e Mafalda vai ver quem é. Qual não foi seu espanto ao olhar pelo olho mágico da porta! Era Dona Ribeiro... Era mesmo ela, estava sem máscara, somente com uma viseira. Mafalda sem saber o que fazer, foi chamar o marido, enquanto a mulher tocava a campainha:
_ Rui! Rui!
_ O que houve? Perguntou o marido assustado. Eles estavam com os gêmeos que não queriam ir ao
banho e saltavam nas suas camas e jogavam os travesseiros um no outro.
_ É ela! É ela! A Dona Ribeiro está a tocar a nossa porta. Respondeu a mulher aflita.
_ À nossa porta?
_ Sim.
_ Cuide dos miúdos, que vou verificar o que ela quer. Rui saiu às pressas em direção a porta de entrada e olhou, mas não viu ninguém. A mulher deve ter ido embora, pensou ele e voltou ao quarto.
_ Ela se foi!
_ Como se foi? Indagou a mulher.
_ Deve ter desistido de falar conosco. Ou teve medo. Não sei! Melhor você ligar para a Maria einformar o que aconteceu._ Tens razão. Eles precisam levar esta senhora de volta ao hospital. Ela solta é um perigo a todos nós!
Mafalda saiu e voltou à sala, foi até a varanda e viu João esparramado na cadeira sem qualquer atenção ao prédio vizinho. Ela bateu-lhe com a mão de leve no ombro, este por estar distraído, assustou-se ao ver a mãe:
_ Então! É assim que fazes o teu serviço? Inqueriu a mãe com ar bravo.
_ Eu estava atento, mãe. Mas ninguém entrava nem saia do prédio, tirei um minuto de descanso. Desculpou-se o rapaz.
_ Pois saiba que seu um minuto de descanso foi o suficiente para Dona Ribeiro vir bater à nossa.
_ Como assim? Ela esteve aqui? Questionou incrédulo o rapaz. Chateado, ele pensou: "O que essa
velha veio fazer aqui, justo quando estou a descansar?".
_ Desculpe-me, mãe! Prometo que vou ficar mais atento!
_ Assim espero ou vais ficar sem telemóvel! Alertou, Mafalda.
_ Sem telemóvel não, mãe!
_ Estás avisado!
João baixou a cabe em obediência à mãe, enquanto escondia o telefone embaixo da almofada em que estava recostado.
Filipe acordou com a confusão. Ele dormia um pouco mais, pois não tinha trabalho naquele dia, mas ficou sabendo do ocorrido e foi correndo ligar para Ana, que em seguida alertou no grupo da igreja. Não demorou muito para outra mensagem ser postada no grupo, agora sobre um telefonema de uma Senhora Ribeiro a solicitar um serviço, o endereço era o da vizinha de Filipe. A essa altura, não mais dúvidas, a fugitiva estava de volta à casa e aterrorizava a vizinhança.
O coordenado do grupo de auxílio da igreja ligou para a esquadra a informar a situação e partiu com mais dois companheiros para a casa de Dona Ribeiro, para garantir que a senhora permaneceria em casa até a chegada da polícia. Os policiais alertaram às autoridades de saúde, que enviaram uma ambulância para a casa da senhora.
Em instantes foi armado todo um aparato para capturar a pobre mulher, que até então nem um ato criminoso tinha contra si, ao contrário sempre foi querida por todos, pela sua forma caridosa de lidar e pelo seu gosto em recitar os poemas que ela mesmo escrevia. Mas agora tinha sobre si a culpa de estar doente; o crime de carregar esse vírus maldito. O vírus da prisão, do isolamento, da depressão, do sufocamento.
Não demorou muito para que a equipe de apoio da igreja chegasse à frente do prédio de Dona Ribeiro. Logo entraram e tocaram a campainha. António, o coordenador, tentou convencer a mulher a voltar para o hospital para ser tratada:
_ Dona Ribeiro, sou eu António! Abra a porta, se faz favor! Estamos aqui para ajudá-la. A senhora sabe que não pode estar em casa sozinha, é perigoso! Precisa voltar para o hospital, para o tratamento.
Argumentou António sem resposta.
_ Dona Ribeiro, somos todos seus amigos. A polícia já está a chegar e também uma ambulância para a levar ao hospital. A senhora está doente! Tentou mais uma vez, António, ao perceber que alguém estava por trás da porta. Logo ouviu a mulher falar com voz trêmula:
_ Não, eu não estou doente! Não pode ser... Eu tomei todos os cuidados! Meu Deus! Não posso estar doente! lamentava a pobre senhora.António olhou os colegas que o acompanhavam e balançou a cabeça de forma negativa, consternado, pensou no quão desesperada deviria estar aquela senhora para não acreditar sequer na própria doença.
_ Dona Ribeiro, acalme-se! Falou o homem com empatia.
_ Não posso estar doente. Quem vai cuidar da minha irmã! Quem vai cuidar da minha irmã! Continuava em lamentos a mulher.
António, homem de muita fé, pediu novamente que a senhora se acalmasse e disse que fariam uma oração juntos para que tudo ficasse bem. Ele sentia-se angustiado, um pouco culpado, pelo estado de Dona Ribeiro. Então, ele e os amigos, juntaram-se em oração, enquanto a senhora ainda lamentava a sua condição do outro lado da porta. Passados alguns minutos, após a oração, já não ouviam nada, nem lamentos, nem choro vindos do apartamento. António ficou aflito, pensou em algo mal ao mesmo tempo em que percebeu que já se passara tempo suficiente para que a polícia e a equipe médica chegassem. Achou tudo estranho. Chamou por Dona Ribeiro, mas ela não respondeu. Ele ficou ainda mais aflito.
A essa altura, muitos vizinhos estavam nas varandas de suas casas a espera de ver qual o desfecho da história. Filipe que também estava a assistir ao desenrolar de tudo, avistou Ana a chegar.
Logo desceu para encontrar a amiga.
_ Olá, Ana!
_ Olá, Filipe! Não consegui ficar em casa, vim saber sobre Dona Ribeiro. Disse a Rapariga com ar preocupado
_ Até agora não saiu de casa ao que parece. A informou, Filipe.
_ Vou ligar ao António. Ele deve saber de alguma coisa. Ana falou com o coordenador, que lhe relatou tudo o que se passava na casa vizinha. Ana ficou ainda mais aflita e informou Filipe, que ligou para a mãe, esta, também a estranhar a demora da ambulância, ligou logo para a amiga, Maria, que ligou para os colegas de trabalho. Assim, conectados, todos ficaram a saber que tanto a equipe de polícia quanto a ambulância haviam se deslocado para outro endereço. Mafalda informou a amiga a morada correta e em poucos minutos lá estavam para resgatar a paciente fugitiva.
A cena que se formou naquela rua parecia de um filme de ação. A polícia a cerca o local, enquanto os socorristas, tecnicamente paramentados para atender aos pacientes infectados pelo vírus, entravam às pressas no prédio.
No andar, em frente a porta do apartamento, António chamava pela moradora sem obter resposta, ele já temia pelo pior, quando abriu-se a porta e dela saiu uma senhora com uma mala na mão a dizer:
_ Estou pronta, podem levar-me. Não posso ficar em casa se estou doente, é perigoso para mim e para a vizinhança. Peço desculpas! Queria só poder cuidar de minha irmã... Ela baixou a cabeça resignada e António compadeceu-se ainda mais dela. "Pobre senhora, está a delirar, pensa ter uma irmã!", pensou ele.
Nesse momento, chegaram os socorristas e acompanharam Dona Ribeiro até a ambulância. Na saída, a mulher olha toda a vizinhança na varanda com um ar de lamento, parecia pedir perdão a todos por colocá-los em risco, mesmo sem ter culpa. Novamente, ninguém ousou dizer uma palavra. Não havia alívio naquela captura, só uma grande sensação de piedade em cada um dos espectadores. Rui abraçou a esposa e foram cuidar de suas vidas, assim como os demais. Ana despediu-se de Filipe evoltou rápido para casa para ver como estava sua avó. Eram dias estranhos aqueles que se viviam, onde as vítimas passaram a ser os culpados...
VI
Em casa de Ana, o telefone tocou, era Nuno, filho de Mariana. Ana sentiu um calafrio, temendo a notícia que viria dessa chamada.
_ Olá, Ana. Como estás? Perguntou Nuno.
_ Estou bem, Senhor Nuno. Obrigada! E Dona Mariana, como vai? Perguntou a rapariga, com um certo temor da resposta que teria.
_ Ah, menina. Vai muito bem, obrigado! Aliás, foi por isso que liguei, para informar a você e sua avó que minha mãe já está bem melhor e deve ter alta em breve. Falou Nuno com uma voz animada, o que alíviou o coração de Ana.
_ Que notícia maravilhosa, Senhor Nuno! Darei a notícia a minha avó. Ela vai ficar muito feliz.
_ Acredito que sim, minha mãe fala sempre de sua avó e da outra amiga, Dona Ribeiro. Quando ela estiver em casa, volto a ligar para que as duas possam conversar.
_ Sim, sim. Faça isso. Fará muito bem as duas.
_ Adeus, Ana!
_ Adeus, Senhor Nuno, beijinhos à Dona Mariana.
Ana sentiu-se feliz com a notícia, porque deixou sua avó ainda mais animada. Dona Inês falava em ensinar as amigas a usar a internet, assim saberiam sempre uma da outra; pensou até em criar uma página para Ribeiro posta os seus poemas. Dona Inês desconhecia o estado de saúde de Dona Ribeiro, por isso, Ana sentia um pouco de culpa por não contar nada a avó, mas sabia que era o melhor para ela naquele momento.
No hospital, Maria, que era chefe de enfermagem, notou algo de estranho no desenrolar daquela história toda, pois havia acabado de receber uma chamada de uma equipe de polícia a informar que encontraram a Sra. Ribeiro, no sótão do prédio, sem vida. A mulher provavelmente morrera em decorrência da doença causada pelo vírus. "Portanto, havia duas Senhoras Ribeiros?", pensou a enfermeira. Ela foi averiguar os cadastros das pacientes e encontrou duas senhoras com o apelido Ribeiro. Uma estava nos tratamentos intensivos, chamava-se Lúcia Ribeiro; a outra era a que havia fugido do hospital, Senhora Cidália Ribeiro, que falecera. Mas, então, quem era a pessoa que estavam a trazer para o hospital?", pensou a enfermeira, a tentar decifrar o enigma que se formava.
Enquanto isso, na casa de Rui uma confusão estava armada. Os gêmeos estavam muito agitados e os pais já não sabiam o que fazer com os meninos, nem mesmo João conseguiu distraí-los com os joguinhos do telemóvel. Não havia outra solução, senão levá-los para um passeio no parquinho da praça. Missão que calhou a Filipe, pois o pai estava a tratar de assuntos de trabalho e a mãe estava cheia de tarefas domésticas por fazer. João ofereceu-se para ajudar no passeio, fato que causou admiração em todos da família, era a primeira vez que ele se mostrava interessado em sair com os irmãos. Então, foram os quatro irmãos ao passeio. Mafalda não poderia estar mais orgulhosa de ver tal cena, os quatro filhos de mãos dadas a passear. Ela ficou emocionada, mas não deixou que os filhos notassem, dando-lhes logo uma longa lista de recomendações.
De volta ao hospital, Maria aguardava a chegada de misteriosa Senhora Ribeiro, ansiosa para desvendar aquele mistério. Ela não precisou esperar muito mais; logo entrou a equipe de socorrista com uma senhora de feições triste, mas não aparentava estar muito doente. Maria teve todos os cuidados ao aproximar-se da senhora. Ela perguntou o nome da misteriosa mulher e a resposta deixou a enfermeira ainda mais confusa; a mulher se chamava Ribeiro. A mulher continuou:
_ Doutora, esses senhores disseram-me que estou doente, mas não sinto nada. Se estiver doente, como vou cuidar de minha irmã? Lamentava a mulher.
_ Irmã? A senhora tem uma irmã? Maria a interrogou a fim de tentar decifrar todo o mistério.
_ Sim. Eu vim para cuidar dela. Ligaram-me há dois dias a dizer que ela está muito doente, internada neste hospital. Explicou a Ribeiro misteriosa. Maria, então, começou a entender toda a história, pois ela recordara de ter ligado para a irmã de uma paciente, Lúcia Ribeiro. O mistério estava desvendado para ela. Mas para ter a confirmação perguntou o nome completo da mulher e essa respondeu: Luzia Ribeiro. Foi, então, que Maria reparou melhor na senhora e percebeu uma grande semelhança entre ela e a paciente Lúcia. Não havia mais dúvida, as duas eram irmãs, irmãs gêmeas. Por isso, todos pensaram que Luiza era a irmã que havia fugido do hospital.
_ Dona Luzia Ribeiro, creio que houve um mal-entendido, mas para termos certeza de que a senhora não está doente, faremos alguns exames e um teste. Acompanhe-me que irei explicar-lhe tudo. E as duas saíram para a sala de exames.
Maria explicou toda a confusão para Dona Luzia e também ouviu uma comovente história de família. Luzia e Lúcia, irmãs gêmeas, eram muito amigas, mas há quase 20 anos que não se falavam, deixaram de ver-se e falar-se por orgulho. Quando os pais faleceram, Luzia queria que Lúcia voltasse para a aldeia onde moravam para ajudar a cuidar dos bens da família, mas Lúcia não desejava sair da cidade grande, tinha o sonho de ser escritora, queria publicar seus poemas. Luzia achava tudo uma grande perda de tempo, um devaneio, mas Lúcia não voltou, então Luzia tomou conta de tudo e Lúcia nunca mais deu notícia ou entrou em contato com a irmã; assim as duas seguiram sem se falar até o dia em que Lúcia foi internada; ela, ao chegar ao hospital, pediu que ligassem à irmã para avisar de sua situação, disse à Maria que queria ver a irmã antes de partir, precisava lhe pedir perdão. Maria lembrou desse pedido e ficou emocionada: "Pensou ela, consigo mesma, pelo menos para alguma coisa boa essa pandemia serviu, juntou novamente duas irmãs que muito se amam".
Luzia não podia ficar no hospital, pois não apresentava sintomas da doença e ainda não havia recebido o resultado do teste, mas antes de voltar para a casa, foi concedido a ela uma regalia que não era permitida a ninguém, mas comovida com a história das irmãs, Maria permitiu que Luzia visse a irmã, por uma janela de vidro que dava para a sala de tratamentos intensivos. O estado de Lúcia era grave e não foi fácil para Luzia ver a irmã naquela situação, mas os dois minutos que ficou foram também suficientes para ela recordar e desejar com todas as forças ter sua irmã de volta.
De volta à casa da irmã, depois daquele furacão de emoções, Luiza estava exausta, decidiu tomar um banho e descansar. Maria, antevendo uma nova confusão, decidiu ligar para Mafalda e explicar tudo o equívoco. Mafalda ficou perplexa com o que ouviu e também um pouco culpada por ter, de alguma forma, contribuído para a criação de tal problema. Por esta razão, ela decidiu informar a todos os vizinhos, por meio de mensagem e telefonemas, sobre toda a verdadeira história. O que foi bom para Luzia que, mesmo a distância, passou a receber mais apoio da vizinhança, agora que já não a temiam, porém sempre a manter os devidos cuidados, após seu resultado ter dado negativo para a covid-19.
Assim, passaram-se quase dois meses, Luzia estava a terminar a arrumação da casa para a chegada de Lúcia, sim, Lúcia estava curada e voltaria à tardinha para casa. O quarto já estava todo preparado para receber a verdadeira Dona Ribeiro, só faltava organizar os papeis que ficaram na escrivaninha, foi aí que ela encontrou uma folha de papel dobrada ao meio, que dizia: "para minha irmã Luzia", nela havia poema inacabado que a fez ir às lágrimas, a pequena estrofe era essa:
"Irmã,
Sem ti, sou apenas metade.
Um reflexo desbotado!
Do que sonhou minha mocidade!
Um aspectro vagante,
De culpa carregado...
Que só por breve instante,
tem a alma confortada,
ao recordar de ti,
Minha versão melhorada!"
Os versos disseram muito à Luzia que conseguiu compreender ainda mais a irmã. Nesses dois meses, soube um pouco mais sobre a vida que a irmã levava e de como era querida por todos. Passou a pensar em si mesma e na vida que lavava na aldeia. Não podia dizer que era má, tinha tudo o que desejava, mas no fundo sempre admirou a irmã por ter tido coragem de seguir os seus sonhos. Luzia sabia que também se deixara levar pelo orgulho e não procurou mais a irmã. Na verdade, as duas encontraram dentro de si mesmas um pouco de cada uma. Lúcia, quando nova, era uma lutadora, feminista, queria mudar o mundo com ideias de justiça e igualdade de gênero, muito à frente do seu tempo para a época; Luzia era sonhadora, queria uma vida simples, casar, ter os seus filhos e viver onde nasceu. As duas, de certa forma, inverteram os papeis, pois Luzia precisou aprender administração para cuidar dos bens da família e Lúcia aprendeu a importância da amizade e do amor, ainda que não tenha casado, teve seus amores, mas o maior de todos sempre foi o amor fraternal pela irmã, que ela nunca,em um único dia de sua vida, esqueceu.
À tarde, estavam todos os vizinhos nas sacadas dos apartamentos à espera da chegada de Dona Ribeiro, que foi trazida para casa por uma ambulância do hospital, por medida de segurança. A Poetisa, que estava mais magra, foi recebida pela irmã a porta de casa, as duas estavam ainda mais parecidas.
Das sacadas, ouviu-se uma salva de palmas assim que Dona Ribeiro apareceu, ela emocionou-se e
saudou todos em gesto de agradecimento, assim como os profissionais de saúde que a acompanhavam.
Pensou ela, quão privilegiada era por ter tão bons vizinhos e a irmã que tanto ama agora perto de si.
Pedro, que também estava na sacada viu as duas senhoras e exclamou surpreso ao pai:
_ Elas são iguais!
_ Sim, são irmãs gêmeas. Como você e o Luís! Explicou Rui. Pedro desceu do alto do banco onde
estava e correu para buscar um pequeno espelho que havia no quarto dos pais, olhou para o irmão Luís e depois olhou-se no espelho, então, percebeu que também era igual ao irmão. Ele já havia ouvido várias vezes que era igual ao irmão, que eram gêmeos, mas ainda não tinha conseguido compreender o que isso significava. Agora pôde perceber que tem uma conexão especial com o irmão Luís e isso lhe deixou orgulhoso, foi a toda família e repetiu a mesma frase para cada um com grande satisfação: "O Luís é meu irmão gêmeo!", a frase agora ganhara novo sentido para ele.
Assim, a vida continuou para todos, de uma forma diferente, sem beijinhos ou abraços, mas com muito mais amor entre as pessoas.
FIM