escombros

Não havia respostas que pudesse dar a ela. Na verdade estava preocupado comigo mesmo, na minha família, nos meus filhos, na falta que hoje inevitavelmente teria ao trabalho, sem esquecer claro, o medo da morte, que parecia iminente, já que tudo era suspeito, tudo esta posto pra terminar numa tragédia, onde tanto eu como ela teríamos o mesmo destino. Entre a gente somente o medo que compartilhávamos de novos desabamentos.

Era uma moça atraente, porem, desprovida daquele algo que costuma afetar os homens, que nos deixa desprovido de palavras ou anestesiado pelo desejo, Por isso pra mim era fácil manter uma certa indiferença. Não havia vontade consolá-la, querer querer aquecê-la, dizer que tudo ficaria bem, que relaxasse, nada disso me dava vontade.

Uma coisa que me veio é que, mesmo eu, que tenho uma certa obsessão pelas mulher, diante de algo maior, a pesrpectiva

muda, e nosso foco se torna aéreo, como se algo mais forte e mais presente nos dominasse a consciência. Simplesmente sua presença não me causa nenhum tipo de deslumbre. Bem que se deslumbrar com uma mulher nessas condições não me parece viável.

Entramos os dois na loja do posto de gasolina, que ficava embaixo da marquise de um grande prédio. lembro dela antes do ocorrido porque me fitou diversas vezes, mas não aquela olhada de interesse, mas a outra, a de desconfiança, ela pegou algo, que aparentemente parecia para alguma criança, tipo uma seleção de doces e pediu um maço de cigarros enquanto eu tomava um café com uma coxinha.

De repente, um estrondo, o prédio caiu. O atendente, ou os atendentes, lembro-me apenas de um estava agora atrás de um grossa camada de concreto que dividiu o ambiente em dois. Não saberia dizer se estava esmagado, morto, desmaiado, ou se por algum milagre, pelo lado da cozinha houvesse encontrado uma saída. Não pensava nele como uma

pessoa perdida, não havia nada nele que me lembrava algo que apreciasse, um homem tão comum e desprovido de prumo, que apenas nos olhava à espera de mais algum pedido, enquanto obsessivamente limpava o balcão de inox que brilhava quase por natureza.

Algo da estrutura nos salvou, havia uma coluna gigante que estava fincada no centro do comércio e essa segurou a parede que cedeu e essa segurou todos os pedregulhos que vieram em seguida, os quais viamos , pedaços assombrados, num equilíbrio que ora parecia que cairia sobre

nós, ora parecia firmes e bem alojados, conforme a intensidade de nosso medo assim mudava nossa percepção. Uma luz que não piscava mais estava muito fraca deixava o ambiente, não claro, mas como uma penumbra que permitia nos ver e alcançar com

os olhos os objetos mais distantes.

Por sorte, a máquina de café, os salgados, alguns doces ficaram disponíveis. La fora, ouvíamos barulhos, vozes abafadas,

barulho de máquinas, imaginávamos bombeiro cumprindo suas missões, ela gritava, estamos aqui. Mas nenhuma resposta, talvez muita gente estivesse gritando a mesma coisa. Aos poucos, tanto os sentimentos pesados que nos sufocava e a própria situação nos calava, nem ela, nem eu, tínhamos vontade de falar, respirar já era um trabalho pesado, pois a sensação era que o ambiente cada vez mais se apertava, ,como se o oxigênio se tornasse raro ou pelo nervosismos nossas narinas se fechasse.

o Cansaço se tornou tão intenso que sentamos um do lado do outro. O lado do outro não era uma escolha, era uma imposição que

a estreiteza que sobrou do lugar impunha. Ela disse que queria fumar. Alertei que isso podia acabar com o nosso oxigênio. Só um, disse com

voz chorosa e se calou. Vaguei com os olhos pelos arredores, até que no final do balcão, eu avistei o cigarro que ela havia comprado. Meio que cambaleando, com uma precariedade que não lembro de ter experimentado, fui até lá e peguei pra ela.

Então, parecendo que não me ouvia acendeu seu cigarro e deu uma tragada, que eu, com sufoco havia alguns anos deixado de fumar pedi um pra ela. Então fumamos juntos, e agora, por apenas fumar um cigarro junto, e vivenciar um prazer em meio aqueles destroços, me senti um pouco mais intimo dela, ela me olhou e deu

um pequeno sorriso, nada excepcional, o riso irónico, quase sem movimento da boca, eu correspondi como se soubesse o que ela havia me dito com os lábios.

Perguntou meu nome. Foi a primeira vez que prestei atenção ao som de sua voz. Linda, mais linda do que ela, e de repente ela era tão bonita como aquelas mulheres que tem algo que deixa o homem alucinado.

Sem demonstrar que fui afetado, disse: - Paulo e o seu? Mara. Prazer,

Mara e completou, queria dizer a mesma coisa Paulo, só posso dizer que seria pior está presa aqui sozinha. Senti algo que parecia uma comoção pela suas palavras. Disse que estava preocupada com o filho, deixou-o sozinho pra de verdade comprar cigarro, mas lhe deu a desculpa que ia comprar uns doces pra ele. Eu ia pra o trabalho. Ela nada

respondeu, e fiz a pergunta mais óbvia e boba pra o momento. Você é casada? Não, o pai do meu filho foi um erro que me errou na vida, nunca mais fui mesma, tentei outras relações, mas nada era como ele. O que aconteceu com ele? nada, disse um dia que estava envolvido com uma mulher, um amor antigo que reapareceu na sua vida. Acontece!

disse com uma certa autonomia, mas na verdade não sabia muito o que falar. Ela era uma desiludida, amarrada ao passado, pelos olhos quando falou dele, ainda estava cheia de ressentimento e tudo levava a crer que fumava desesperadamente pra esquecer um pouco, não ele, mas a si mesmo. Depois emendei, também já perdi um grande amor. Ficou em silencio. Estranho perceber que, o que mais queremos

é fugir do passado, mas qualquer chance que temos, a ele voltamos com suas frustrações, e desencanto. Amava-a mesmo? sim. É casado? sim!, ama! de outro jeito mais amo, ela é boa comigo, confio nela e não me causa aborrecimentos, além de ser uma boa maãe. Parece bastantes motivos para amá-la. Sim, mas cada pessoa nos desperta de outro jeito. Algumas nos leva apenas a alguns limites, outras nos faz arrebentar barreiras a ponto de não mais nos reconhecer. Verdade, respondeu ela, com uma voz cheia de medo e melancolia.

Por algum tempo esqueci da nossa situação, Paulo. Eu também. Será que aquela máquina consegue fazer um café? Ela abruptamente, até me assustando, se levantou, eu ja mexi com uma dessas, deixa eu tentar.

Na verdade, a máquina estava cheia de café e por um

milagre a parte elétrica estava funcionando. Então precisou apenas esquentar, tomamos juntos no mesmo copo, já que os demais estavam amarronzados de poeira. Perguntei pra ela se meu rosto estava como os copos. Ela disse que sim, que depois que saíssemos dali, não me reconheceria. Então eu falei, que não teria esse problema, a saberia

pelos olhos, pela boca, pelo jeito de gesticular. Está me galanteando? dei uma risada alta pra esconder minha vergonha e falta de resposta. Acho que não, o momento não nos dá o clima e o ambiente necessário. Senti-a vaidosa com as coisas que disse.

Então ouvíamos uma voz la de fora, tei alguém ai? gritamos os dois, gritamos alto. Em coro, estamos aqui. A voz não nos respondeu. bateu uma agonia desesperadora. E se eles desistirem? assustada

me falou segurando nos meus ombros. Não fariam isso. Estão apenas testando se tem alguém, assim retira os escombros com mais cuidado.

Mas eles não nos ouviram, não fica perigoso? Não sabia o que dizer pra ela. Ouvíamos o choque de uma alguma máquina diante de algo pesado,

como se quisesse romper, derrubar, abrir caminho. O medo também me abateu, porque qualquer força mais elava poderia romper o equilíbrio precário que estávamos emaranhados. Depois um silencio. Ficamos calados. uma esperança havia rompido o medo, mas o medo logo venceu e caímos num silencio perturbador. Tome seu café, esfriou, não quero mais, vou fumar outro cigarro. Acendeu, e tragava de forma tão lírica como se fosse o desabrochar inevitável de um grande final, saboreou a fumaça e depois a esparramou lentamente com o naria

pelo ambiente, minha boca encheu d'água, pedi um, que fumei, mas não alcancei aquela entrega que ela demonstrou, fumei convulsivamente como quem quisesse através da fumaça jogar algum terror pra fora.

Vai com calma. então eu rir de verdade e ela riu também. Seus dentes eram como que molduras feita por encomenda, absolutamente regulares e de uma brancura que não lembrava uma pessoa que fumava e gostava de café. Ela pegou na minha mão e apertou. Apertei de volta, me senti seguro, talvez ela também se sentisse assim com esse gesto. Mas nada comentamos, ficamos assim durante bastante tempo e uma espécie de sono, que era mais um mormaço desses de quando muito cansados

nos assalta e por alguns minutos, não dormimos, mas nos entregamos àquela pequena morte que o corpo pedia. Depois de despertos, ela me abraçou e eu a abracei, mas era um abraço comum, era só a expressão do desespero que não encontrava outra forma de se materializar.

Ocorreu-me beija-la, mas desisti, acreditei que seria uma covardia,

ou ato deliberado sem nenhuma espécie de avaliação. Um tanto sem graça se afastou. Nossos

rostos pingavam suor, cada vez o lugar fivaca mais quente, e nos deixava afobado e com

o ar cada vez mais rarefeito.

Ela se afastou um pouco de mim, pegou o café frio e começou a bebericar. Você se importa de eu tirar a blusa? É que está insuportável. Não se preocupe! eu realmente não me importava, tirou a blusa de cima, ainda ficou uma espécie de camisa rendada por baixo onde se notava que ainda era uma mulher viva, que ainda lhe rondava a sensualidade, que ela escondia com a roupa e uma espécie de postura blazer, como se não quisesse ser notada por esse aspecto.

Se acontecer algo comigo você leva esses doces para meu filho? Moro na rua das Marquises, 21. Não fale do cigarro prometi pra ele que ia parar.

Não vai acontecer nada, você só está com medo, daqui a pouco uma

dessas máquinas abre uma brecha por onde passaremos. Eles nem nos escuta, o perigo é eles acabarem de nos enterrar. Deixa disso.

Você trabalha com o que? Sou analista de sistemas, trabalho com informática. Mal sei ligar um computador, sou de outro tempo e creio que toda essa coisa de computador, internet me fez mais isolada por não participar disso. Muita gente pensa e vive como você. Realmente tem seu lado sombrio que afasta mesmo as pessoas, meu trabalho não é voltado pra essa área, mas compreendo o que está dizendo. E com isso, algumas conversas, ou pequenas confissões, ela já não era a mesma pessoa. Parecia mais alguém da minha convivência mais intima. Ela encostou na parede, fechou os olhos, e se deixou ficar naquela posição por bastante tempo e uma solidão atroz tomou conta de mim. Não

queria incomoda-la, mas aquele seu pequeno afastamento me deixou mais cônscio da nossa situação, e com essa consciência fui tomado por um pavor e minhas pernas começaram a tremer e eu não podia

controlar, ao ponto dela perceber o barulho que fazia, abriu os olhos e de joelhos veio até perto de mim, pegou nas minhas mãos e aos poucos toda aquela sensação foi apaziguando, sem dizer uma palavra, pôs minha cabeça no colo, e algumas imagens de quando era criança desamparada veio a minha mente, lembrei da minha irmã mais velha, da minha mãe, das pessoas queridas que já havia partido e me coloquei como se estivesse a caminho do mesmo fim, chorei baixinho, e eu que neguei a ela algum conforto no começo, começou a me consolar. Perguntou se eu aceitava um pouco d'água. Disse que sim, meio se arrastando, andando com dificuldade, mais pelo medo do que por uma limitação física forçou a geladeira ate que essa se abriu. Olhou pra

min e falou com certo entusiasmo: Tem suco e coca-cola também. Sem tirar os olhos de mim, esperava minha resposta.

Então falei, suco! Quando ela virou pra geladeira um pedaço de concreto caiu sobre suas costas. Corri até ela, seus olhos abertos, muito abertos tentava dizer algo. o sangue espalhou pelos cantos do seu corpo e sem

que a palavra viesse à tona, deu um suspiro. Então me veio um choro convulsivo. Não parecia que chorava apenas por ela, era como se todos os mortos da minha vida estivessem morrido naquele instante. Sem noção de espaço, cambaleando nas prateleiras, consegui chegar até a parede. Nenhum pensamento entrava em mim, só um torpor que me congelava e me matava a esperança. Ouvi uma voz lá de fora perguntando se havia alguém ali. Minha boca abria mas não havia som, apenas o movimento da boca e uma ânsia, como se minhas tripas quisessem fugir. Estava sozinho e nada mais dependia de mim.