O ADEUS DA VELHA SENHORA
Ele conheceu-a quando tinha vinte e cinco anos e usava um blusão de cabedal.Numa entrevista de recrutamento.
- O Colégio não é nenhum convento mas o senhor parece tão jovem com esse blusão que ainda é confundido com algum aluno.
Arregalaram ambos os olhos.E no momento seguinte já se sentiam à vontade e em confiança.
Era o tempo do Copcon e do povo unido.Das manifestações e dos comícios.E ele fora chamado por responder a um anúncio para professor mal acabara a licenciatura.
Quando saiu do Gabinete vinha com o lugar apalavrado, meio sorriso a pairar na expressão e o matronato instalado com a clientela circundante a medi-lo de alto a baixo:
- É o que vem substituir o Rangel!
João tinha sido sempre um admirador das Old Ladies cheias de charme.E já conhecera algumas: a Rey Colaço, a Madalena Patacho,a Agar Guerreiro da Franca…divinas todas elas, com um charme irresistível.Colares de pérolas, relógios que tinham sido dos falecidos, écharpes e óculos escuros e discretos.Senhoras distintas.Assim como a Ingrid Bergman arrasadora, chique e cheia de estilo em “A Visita” baseada na célebre peça de Friedrich Dürrenmatt.
M. A. trespassava qualquer um com o seu olhar perscrutador, por vezes em alvo, a sua ironia desconcertante, o seu humor fino e o seu sorriso irresistível.Tirava a fotografia de uma pessoa num segundo até às camadas mais profundas do seu ser.
E depois ele adorava as suas ordens redigidas numa letra gatafunhada, meia gótica mas de uma personalidade e elegância inconfundível.
“São proibidas todas as manifestações de alegria durante a quadra carnavalesca”
“Os alunos não devem vir mascarados para evitar sensaborias”
“Proibida a entrada a estranhos a este departamento” - à porta da cafetaria improvisada.
Ele não prescindia de pedir uma audiência no célebre gabinete ao lado da secretaria, de esperar pacientemente que a luz verde piscasse com um zumbido e de entrar para ir ao beija-mão e discorrer sobre questões de trabalho, política,arte,televisão e a vida em geral.
Ela somava conhecimentos valiosos de gestão a uma capacidade psicológica pragmática e fora de série.Escutava o interlocutor enquanto fazia uma festa à cadela cocker enroscada aos pés.
Admoestava-o como um jovem em fase de aprendizagem:
- Ora aqui está uma oportunidade que perdeu em não ficar calado!
Ou:
- Não o escolhi para o secretariado de exames porque o senhor é muito aéreo.O seu colega de curso não voa tanto e parece muito mais sossegado e com os pés assentes na terra. – alusão a ele ter passado a colaborar em part-time por trabalhar em full numa companhia de aviação.
Ou sentenciava com bonomia:
- A sua Mulher é um livro clássico numa encadernação moderna.
Ou:
- Fico satisfeita quando vejo os professores que aqui começaram ainda jovens terem-se tornado em pessoas experientes e bem sucedidas.
-Ai, srª Diretora a sério?Já pareço assim tão velho?
João convidou-a a assistir à estreia da sua peça “Ligeiramente Sórdido” no Teatro da Trindade.E ela fez uma grande entrada, acompanhada pela irmã até à primeira fila.
Na régie, o Técnico de luzes observou:
- Aquela senhora que ali vai parece a Bergman n'"A visita" quando desembarca do comboio de regresso à cidade natal.
Mais tarde,ele condoeu-se com a perda dramática de P. o único filho dela.Compareceu comovido e acompanhado pela Mulher no velório para lhe prestarem a sua solidariedade e lhe darem os sentimentos.
Sentiu irremediavelmente a sua falta quando ela esteve durante meses ausente a recuperar do desgosto.
Para ele, ela era uma da personagens com as quais se tinha cruzado na sua vida e em quem confiava plenamente e se sentia eternamente grato por lhe ter oferecido uma oportunidade sem o conhecer de lado nenhum.Sem cunhas.Uma aposta num jovem talvez com um ar franco, sensível e com certeza inexperiente.
Por isso se afligiu tanto quando ela o chamou e lhe participou que estava cansada e se queria reformar ao que ele prontamente retorquiu.
-Mas Senhora Diretora, não precisa de fazer nada.Basta existir.
As coisas nunca mais foram iguais.O Colégio decaiu e reergueu-se.Uma multidão de gente entrou e saiu, os melhores professores e alunos sempre em low profile, caídos no esquecimento.Vários invernos sacudiram as folhas das árvores e despiram algumas consciências de esperança e de vontade.
-Ela vendeu a quota.
-Vive retirada.O marido e a irmã, a temível Drª I, já morreram.
No 50º aniversário o novo CEO convidou-a para o jantar de comemoração e ela compareceu já levemente fragilizada e trémula mas do alto da sua venerável idade polidamente congratulou os convivas pelo desenvolvimento da Escola requalificada, salva da falência e quase campeã dos rankings nos exames nacionais.
Ele veio falar-lhe no fim de tudo,o professor outrora jovem e já envelhecido com algumas rugas no rosto e na alma.Abriu um amplo sorriso, pegou-lhe na mão e beijou-a:
- É como se tivessem passado séculos.Não sei se ainda se lembra de mim?
- Claro que me lembro.O senhor sempre foi tão…sui generis!
- Não sei Srª Diretora se posso considerar isso uma crítica ou um elogio mas asseguro-lhe de que gosto na mesma, seja qual fôr o sentido.
Despediram-se com um assentimento de simpatia e afecto.Ele curvou a cabeça numa vénia quase imperceptível.
Mais tempo se passou…muitas horas, inexoráveis e cavadas e ele perguntava de vez em quando à Dona Z quando se deslocava à Secretaria:
- Têm tido notícias dela?
- Está muito velhinha e parece que repete as coisas muitas vezes.
- Ainda tem o cão… quer dizer a cadela?
- Já não. Morreu.Ela conseguiu sobreviver a todos!
- Mas porque é que não arranja outro… ou outra?Sempre era uma companhia.
- Já tentaram convencê-la mas ela respondeu que já não tinha tempo.
Ele olhava de relance para o busto em baixo relevo incrustado na parede do lado direito da entrada.Suspirava em silêncio. Vinha-se embora a pensar:
-Sempre que estiver perante um problema ou que tomar uma decisão mais difícil vou perguntar-me invariavelmente “Como é que ela o faria?”.