Anjo dentro do pote
—Vai tomar água antes de dormir, senão o anjo da guarda cai dentro do pote. Aconselhava a mãe sempre que a boca da noite caía.
No sertão da minha infância, a água era mais que o líquido precioso que saciava a sede, era sinônimo de remédio milagroso, e trazia a superstição: Na beira do rio, da lagoa, do açude e até no pote de barro dentro da casa vivia a mãe da água que à noite descansava, dormia sonolenta. E se acaso o filho chamasse os pais pedindo água, o simples fato de oferecer-lhe o copo d’água era motivo do ritual:
A água estava dormindo, e era necessário acordá-la antes de beber, era preciso pedir licença à mãe d’água para sorver-lhe seus goles e matar a sede da criança .
Minha mãe sempre nos aconselhava a beber água antes de deitar, mas como quem tivesse comido sal, a sede acordava a mim ou as minhas irmãs, e temendo irmos ao pote e dar de cara com o anjo da guarda dentro, nós a chamávamos. Mamãe levantava, ia à cozinha, abria com cuidado o pote, de onde uma rã também dormia e de susto pulava. Com um copo de ágata ou alumínio, minha mãe retirava água e ia derramando noutro copo, num movimento frenético, passando e repassando até que a água também acordasse, deixando-nos ainda mais aguadas de vontade.
Ao fim do ritual, a água servida fresca, saciava nossa sede, e nos acalmava, pois a mãe levantara bem antes do anjo da guarda, impedindo-o cair dentro do pote.
A mãe d’água com certeza guardava com ela seres místicos, além de peixes e anfíbios. No sertão, em qualquer pote d’água habitava o supremo, pares de asas, anjos que à noite saciavam a sede quando a criança não bebia água antes de deitar. A mãe d’água guardava um anjo no pote ou uma rã no fundo dele, raspando e cantando vida.
Paula Belmino