HOJE É MEU ANIVERSÁRIO E EU RESOLVI COMEMORAR COM VOCÊS, MEUS AMIGOS QUERIDOS DO RECANTO DAS LETRAS, PUBLICANDO UM CONTO NOVO. ABRAÇOS.



- DECALQUE - IOLANDINHA PINHEIRO

Sinônimos de decalque são imitação, arremedo, cópia, falsificação, contrafacção, reflexo, simulacro, calque, calco…



Maria Alice tinha um sonho. Ela só queria ser vista, ouvida, percebida. Por algum motivo louco Maria Alice parecia não existir. Vivia com uma família bem grande mas parecia não fazer parte dela. Tinha várias irmãs, e apenas uma babá para as todas. Ia com elas sempre para a praça, mas se não ficasse atenta, certamente a deixariam para trás, sozinha olhando para a enorme casa onde viviam.

Fazia aniversário no mesmo mês que a irmã mais velha, então nunca a festa era só dela. Na verdade, até esqueciam de colocar no único bolo a vela com o número de sua nova idade.
Maria Alice soprava a velinha de Suzi ou de quem mais estivesse aniversariando na festa do mês de março, ninguém nunca se incomodava.

Usava roupas que ficaram apertadas e sapatos gastos. Aproveitava um cantinho do armário para guardar as coisas. Um dia a chamaram para dizer que por causa de suas notas iria estudar numa escola particular, com uma bolsa de estudos. Ganhou material novo e uma mochila azul. Sentava-se invisível num cantinho da sala de aula e, quando tentava levantar a mão, outra pessoa respondia antes.

O cabelo escuro e o rosto muito branco não ajudavam. Maria Alice era uma estampa em escala de cinza com cara de foto antiga, um registro em preto e branco no meio do vazio de seus dias.

A menina se sentia como um ponto cego na paisagem da vida. E foi assim até a chegada de um rapaz novato à escola. Thiago era de outra cidade, um lugar maior, mais desenvolvido. Desde que a vira andando perto da cantina ficava sempre rondando o corredor onde ficava a sala dela. Era um rapaz bonito. Estava sempre rodeado das garotas mais assediadas, mas só parecia ter olhos para ela.

Mesmo depois desta novidade, Maria Alice achou estranho quando lhe entregaram o convite para a festa da Patrícia, uma mocinha rica de sua sala. Leu três vezes para ter certeza de que o seu nome estava escrito naquele papel caro. Era. Passou a semana pensando na roupa que iria usar, ansiava por sair da neutralidade, mas não a ponto de ser um contraste do que sempre foi. Escolheu um vestido marfim discreto. O batom era o máximo da ousadia: vermelho.

Prendeu a respiração ao chegar à porta do baile. Convite na mão, ainda com medo de ter sido um engano. Não era. Sentou-se em uma cadeira perto da varanda, logo as suas colegas começaram a ocupar as outras cadeiras e iniciar uma conversa que só se partilha com amigos próximos.

E de repente se viu respondendo perguntas sobre a própria vida. Na falta de alguma relevância, criou enredos maravilhosos, viagens, uma família carinhosa, e todos os sonhos que ela construía apenas em sua imaginação, para não morrer no esquecimento.

Descobriu a razão de toda aquela visibilidade quando o primo da anfitriã a chamou para dançar. Era o tal Thiago. Um garoto alto do tipo que não passa despercebido. Relutou um pouco antes de aceitar o convite, nem tanto pelo fato de jamais ter dançado antes, mas porque toda aquela atenção inédita acendia um alerta em seu desconfiado coração.

Durante a música ele confessou haver pedido à prima para que a chamasse. Falou que gostava de sua timidez, que gostava dela, de tudo o que ela era: do cabelo escorrido, do talhe fino, dos modos contidos, dos olhos sempre baixos, da suavidade do semblante. Falou que era única. Rara.

A dança não terminava, mas o tempo que tinha para voltar, sim. Queria que aquela noite durasse toda a sua vida, porém o sonho estava acabando. Logo estaria deitada na velha e triste cama, devolveria a roupa bonita à verdadeira dona, limparia o batom que ainda restara em sua boca.

Enquanto a moça saía, Thiago pensava em quando a veria de novo. E se ela aceitaria as suas propostas de felicidade perpétua. Talvez não tão para sempre assim, mas o rapaz estava apaixonado de verdade. Só o tempo diria o futuro.

Pelo trajeto a moça procurava não pensar em nada daquilo. Afinal tinha amigas e até um pretendente. Com sorte ele a pediria em namoro e inauguraria o frescor de seus lábios guardados para um momento perdido de um destino incerto. Os dois mundos de sua vida colidiram naquele caminho. Distraída pelo devaneio vivido e ainda mais pelo sonho que planejava viver, aquele que jamais teria, não percebeu o carro dobrando a esquina e depois foi tarde demais.

Em um segundo tudo acabou. A luz cegou seus olhos e o impacto a derrubou. Nunca soube o nome do rapaz que quebrou suas costelas, ou a placa do carro que esmagou suas pernas. Para a polícia e para a pequena multidão que logo se formou em torno da cena trágica, o motorista se justificava.

- Eu não a vi!

Dois dias depois, durante o velório, as novas amigas estranharam a ausência da família da defunta. Queriam prestar condolências às irmãs, e aos pais.

- Maria Alice não tem família. Nunca teve. Estudava com bolsa, morou a vida toda num orfanato. - Informou a diretora da instituição: uma freira de meia idade.

O caixão permaneceu fechado. Desfigurada pelo atropelamento, Maria Alice ficou invisível em seu último evento.