Tinta Preta
Sinto que fui colocado no mundo como um desenho não muito técnico feito em traços meio cômicos que tinha tudo para ser o máximo, mas, por algum motivo não está sendo. É que, de repente, você chega à maioridade e consegue ser tudo, menos sereno. Na verdade, não, você não é tudo. Você nem sequer é. Deixou de ser há muito tempo. Isso, se é que um dia já foi. Quem te disse que você era? Bom, não vou entrar nesse mérito. Especular sobre o passado é, de certa forma, tolice considerando que só se tem o agora. Que eu não seja mal interpretado, tenho respeito por todos os sábios, os místicos, os doutores e os anciãos. De muita valia e com muito apreço vejo seus conhecimentos e desconhecimentos ecoando até o dia de minha geração. Mas existe um detalhe intrínseco, obscuro e real de uma forma que parece um soco com relação a eles. Já não o são mais. Se um dia já foram, eu repito, não o são mais. Para maior ênfase, exijo que eu seja escutado então leiam minhas letras garrafais: ELES NÃO O SÃO MAIS. Ouvir isso lava a sua alma? Pois para a minha é como ouvir o grito do silêncio: se os outros que eram ação reduziram-se a inatividade, eu, que sou só potência ínfima, o que poderia esperar do viver? Se eles que foram técnicos ou subversivos ou apenas cintilantes, um dia vieram a se tornar opacos, o que eu, que me podo tanto para ser tão pouco na esperança de me tornar algo poderia exigir? Eu não exijo. Eu nem sequer chamo verbos mais. Eu apenas calo. Nem calar eu calo, pois calar é verbo e verbo demanda ação. Agora, apenas o silêncio age. Ele pinga como tinta preta na minha face, cai do alto como chuva ácida e eu só… deixo. Quando se expressa algo por palavras e depois se deixa, aos poucos, o silêncio tomar conta… aí é que se igualam os vivos aos mortos. Aí é que passado e presente se beijam.