O Campeão
Vida de treinador de futebol é dura. Sempre é a parte mais instável do elo que forma a corrente clubística que engloba ainda torcida, diretoria e time. Pode se fazer ate mesmo uma carreira vitoriosa que no primeiro sinal de problemas, os caras te mandam embora.
Nem sei por que embarquei nessa louca e estressante carreira. Talvez por ter ouvido as histórias que meu pai contava pra mim, pro Mário e pro Luís sobre como conquistou a Copa de 1970 sendo auxiliar do Zagalo. Ele fez uma carreira ao mesmo tempo vitoriosa e turbulenta por causa das desavenças com alguns cartolas da época.
Era um ídolo pra nós e naturalmente segui os passos dele assim como meus irmãos.
Passei por alguns clubes ao longo da minha carreira tendo resultados variados, conquistando títulos, revelando jogadores e revolucionando o sistema de jogo.
Sempre sonhei em treinar a Seleção Brasileira e leva-la ao hexa. Até imaginava a manchete nos jornais: “Carlos Oliveira, Campeão com a Seleção Brasileira.”
No entanto, acabei rejeitado pelos ditos “sabichões” da CBF por ser progressista demais, em outras palavras, por ter ideias, digamos, meio comunistas para o cargo em questão.
Ora essa, como podem dizer isso de mim se nem comunista sou. Só queria ser campeão como meu pai foi em 1970 e honrar a missão dos Oliveira de ser treinadores de futebol.
Desiludido com tudo, resolvi tentar a sorte na Alemanha aperfeiçoando os métodos de treinamento com os melhores técnicos do mundo como Pep Guardiola, Joachim Low e outros.
Fiz minha fama treinando o Schalke 04 e após duas temporadas lá, fui ao todo poderoso Bayern de Munique sendo a princípio auxiliar do Guardiola e depois quando este foi para o Manchester City, me tornei técnico principal levando o clube a ser campeão da UEFA Champions League.
Então resolvi naturalizar-me alemão e seguir minha carreira com o Bayern de Munique ao menos para ser técnico da seleção alemã quando chegasse a hora.
Só não esperava ser as vésperas de uma Copa do Mundo. Joachim Low se desentendeu com os dirigentes e acabou demitido devido a isso.
Era minha oportunidade de mostrar meu valor calando a boca daqueles detratores que insistem em dizer que a minha carreira havia acabado.
Claro que a torcida alemã estava desconfiada de mim e até compreendo-a. Eu, um estrangeiro sendo chamado em cima da hora com o grupo já convocado pelo Low e com os holofotes do mundo todo em cima de nós, os campeões do mundo que fizeram o resultado mais lembrado por todo um país, o 7 x 1 em cima do Brasil no Mineirão em 2014.
Mas aceitei o desafio de boas. Um Oliveira nunca foge da luta e nem tampouco se rende a quaisquer circunstâncias.
Durante a viagem até São Petersburgo, onde ficaríamos até o fim da Copa, fiquei sabendo pelos jornais que Mário, meu irmão mais novo, havia sido contratado para assumir o cargo de técnico da seleção russa, que era a anfitriã daquela Copa.
Fiquei surpreso e ao mesmo tempo curioso pra saber o quanto o garoto evoluiu como técnico.
Mário foi o único de nós que jogou profissionalmente. Tinha uma carreira promissora, mas uma entrada criminosa de um zagueiro lá do interior do Rio Grande do Sul fez acabar precocemente sua carreira de jogador. Lesão grave dos ligamentos do joelho esquerdo.
Ele também resolveu seguir a carreira de treinador. Sonhava em colocar o Brasil de Pelotas na Série A usando seus métodos ortodoxos de trabalho, mas entrou em rota de colisão com os dirigentes e foi demitido de uma forma mais traumática que possa imaginar.
Encontrou a paz no Caxias e ali sua carreira decolou. Fez calar o Beira-Rio levando o título gaúcho e montou um time conhecido como a “ONU gaúcha” devido a contratação de alguns jogadores vindos de países como Angola e Japão.
Isso chamou a atenção dos dirigentes russos que o contrataram com o objetivo de ao menos não fazer feio em casa.
Sempre soube que mais cedo ou mais tarde teríamos que nos enfrentar, mas nunca imaginei que isso aconteceria em plena final de Copa do Mundo.
Vi o jogo de abertura da Rússia contra a Sérvia e percebi que Mário estava um pouco tenso na casamata e ficou ainda mais pelo sofrido empate em 0 x 0 com o goleiro deles pegando um pênalti.
Achei que não estava a altura do desafio, mas em breve descobriria que tinha mais força do que imaginei.
Os rapazes tiveram uma fase de grupos bem tranquila. Ganhamos da República Tcheca na conta do chá, do Equador com uma boa atuação de Thomas Muller e da Coréia do Norte com uma atuação de gala de Podolski.
Enquanto isso, Mário também fazia sua boa campanha em seu grupo com atuações de encher os olhos da torcida russa. Pude ver isso pessoalmente na confiança que os torcedores depositavam nele e nos seus jogadores.
Nas fases seguintes, tivemos algumas dificuldades contra a Coréia do Sul e seus velozes jogadores. Que jogo encardido foi aquele.
Só conseguimos nos classificar na prorrogação com um gol chorado de Ozil e ali respirei aliviado mantendo-me o sonho de ser campeão do mundo.
Contra o Paraguai foi bem mais tranquilo. Foi a melhor atuação dos rapazes e o 5 x 0 me trouxe ainda mais confiança.
Mário fazia o mesmo com a seleção russa. Triturou a Bélgica em menos de 30 minutos e penou um bocado pra ganhar dos gregos nas quartas-de-final.
Cada noite era uma festa para os russos que haviam feito uma campanha até aqui impecável graças ao bom trabalho do Mário.
Quis o destino que o Brasil cruzasse meu caminho nas semifinais. Estava ansioso pra calar a boca daqueles cretinos da CBF e mostrando a eles que foi um grande erro ter me rejeitado pra Seleção Brasileira.
Era complicado pra mim ouvir o Hino Nacional Brasileiro sendo adversário do Brasil. Agora entendo como Didi se sentiu quando teve que enfrentá-los em 1970 treinando o Peru. Meu pai me contou que uma lágrima caía no rosto dele no momento em que o hino do Brasil era tocado.
A torcida já estava imaginando um novo 7 x 1, mas as coisas não seriam tão simples.
Os brasileiros queriam a vingança a todo custo e movidos por uma mídia que os cobrava o tempo inteiro, certamente traria dificuldades para a gente.
No entanto, Muller fez um dos gols mais rápidos da história das Copas com um chute cruzado e depois fez o segundo de cabeça. Parecia que se repetiria a goleada de 2014, mas em duas cochiladas da zaga, o Brasil havia empatado o jogo e Neuer havia feito um milagre pouco depois.
Aquilo me deixou enfurecido e quando o intervalo chegou, passei uma carraspana daquelas nos rapazes, pedindo mais empenho e raça no segundo tempo.
Eu queria ser campeão do mundo e não queria que nada me atrapalhasse.
Coloquei Strobl com a missão de neutralizar Neymar a todo custo e ele não só cumpriu o que pedi a risca, provocando a expulsão do camisa 10 quando ainda fez o cruzamento para Gotze marcar o gol da vitória e da nossa classificação a final.
Sai sorridente do campo e satisfeito pela vingança consumada contra os arrogantes dirigentes que só atrasam a evolução de nosso futebol.
No dia seguinte, fui ver a outra semifinal entre russos e ucranianos. Eles pareciam Brasil e Argentina, mas os jogos deles eram mais viscerais do que nossos confrontos com os hermanos.
Queria ver como Mário se sairia em momentos de pressão como esse. E pelo que vi, passou com louvor.
Foi um jogo parecido com Itália x Alemanha de 1970. Um jogo maluco e com muitas reviravoltas no placar. Os russos saíram na frente e os ucranianos empataram no final forçando a prorrogação. Então veio a loucura total.
Os russos chegaram a abrir 3 x 1 com dois gols contra nos primeiros 15 minutos e logo depois, os ucranianos haviam chegado ao 3 x 3.
A guerra de torcidas era barulhenta e nem sei como não fiquei surdo com tanta gritaria.
Foi então que veio a última bola do jogo. Levantamento pra área, um bate-rebate louco na área e Kulik havia dado um toquinho pra levar os russos a final inédita.
E o confronto inevitável com Mário. Fiquei muito feliz quando seu nome foi gritado pelos torcedores. Alguns deles até queriam tocá-lo, mas os policiais não deixaram.
Ele agora era um herói nacional e ao mesmo tempo que estava orgulhoso do feito dele, também sentia medo.
Afinal, dizem que o primeiro oponente que enfrenta na vida é seu próprio irmão e ali vi uma grande ameaça em meu sonho de ser campeão mundial.
Aquela final seria um dos jogos mais difíceis e ao mesmo tempo mais divertidos da minha carreira.
Tinha, ainda assim, a confiança dos rapazes que estavam jogando o fino até aqui confirmando o favoritismo alemão de conquistar o bicampeonato mundial.
Nunca gostei dessa história de favorito. Isso foi a mídia que inventou pra encher linguiça e agradar o pessoal que lê crônicas, vê notícias e ouve comentaristas que as vezes dizem o óbvio ululante, como Nelson Rodrigues sempre falava.
Lembrem-se da Hungria de 1954 de Puskás, Kocsis e companhia que perderam pra uma esforçada Alemanha? Ou o próprio Brasil de 1950 que jogava o fino e perdeu para os uruguaios em pleno Maracanã?
Por isso que tenho que ser cauteloso ainda mais contra Mário, que sempre foi partidário de um futebol bastante ofensivo.
Mas queria ser campeão do mundo mesmo tendo que passar por cima dele e um Maracanazo russo estava em meus planos.
O dia havia chegado. Moscou havia parado para ver a grande final e o estádio estava lotado até o limite pelas duas torcidas. Todas as emissoras do planeta tinham olhares para mim e Mário.
Tínhamos feito história como os primeiros técnicos estrangeiros a chegarem a uma final de Copa, mas eu não estava preocupado com estatísticas.
Só tinha olhos para a Taça FIFA e o sonho de fazer parte do panteão de técnicos campeões do mundo.
Os hinos eram tocados com louvor e os torcedores cantaram a capela tanto a Deustchland Uber Alles quanto ao Hino Estatal da Federação Russa.
Eu e Mário estávamos quietos e concentrados nas nossas casamatas. Parecíamos Clint Eastwood e Lee Van Cleef na hora do duelo final.
Dei um forte abraço em Mário desejando sorte mútua e voltei a minha casamata pensando em meu pai e em Luís que estavam assistindo ao jogo lá em Pelotas. Certamente um batalhão de repórteres estariam como abutres esperando uma entrevista com eles.
Lembrei ainda de nossas trajetórias e de tudo que passamos pra chegar a esse grande momento.
Então a partida começou.
A tensão estava no ar a cada jogada, cada dividida e cada lance de parte a parte. Meu coração estava saltitando de tanto nervosismo e na ânsia do jogo, tinha tomado uma garrafa de água inteira.
Pedia mais marcação no meio-campo e pressão na saída de bola dos russos, porque percebi que o ponto fraco deles era o toque de bola.
A pressão foi tanta que Torbinsky havia feito falta forte em Muller nas proximidades da área e eu esfregava as mãos já prevendo o gol que sairia.
Podolski era ótimo cobrador de faltas e fez jus a fama mandando a bola lá onde a coruja dorme abrindo o marcador e silenciando quase todo o estádio.
Vibrei pelo gol e fiquei prazeroso quando Mário chutou a garrafa d´agua de raiva pelo gol sofrido e pelo cartão amarelo que Torbinsky tomou no lance.
Mas por que eu estava tão tenso? Era só fazer o segundo gol e tudo estaria acabado, já que meus rapazes estavam mandando na partida.
O problema é que Mário não era um técnico convencional. Ele sempre fazia uma de suas malucas substituições arriscando tudo de forma irresponsável, como se não tivesse nada a perder.
E foi exatamente o que fez. Tirou Torbinsky ainda no primeiro tempo e colocou Bukharov, um centroavante grandalhão, arriscando tudo com três atacantes na tentativa de me surpreender.
Nem deu tempo pra armar um esquema pra neutralizar a loucura do Mário porque justamente Bukharov havia empatado o jogo exatamente de cabeça numa das tantas bolas cruzadas na área.
Era minha vez de chutar a garrafa d´agua de raiva e dar uma bronca nos meus zagueiros por ter deixado o cara livre pra cabecear.
A tensão já estava ao limite extremo e explodiu em uma entrada dura de Mukhammad em Khedira e o juiz o expulsou de forma justa. Então veio o famigerado VAR e anulou a expulsão transformando-o em cartão amarelo.
Quando percebi que Khedira saiu com suspeita de fratura na tíbia, fiquei furioso e parti como um possesso pra cima do juiz tentando agredi-lo pelo absurdo da marcação do cartão amarelo. O cara chamou os policiais que bateram em meus rapazes e o jogo teve que ser suspenso por 15 minutos pra acalmar os ânimos.
O jogo reiniciou só pra fechar os descontos do primeiro tempo e quando acabou, saí tão irritado pelo lance da falta que nem sequer dei entrevistas.
Pedi pra que os rapazes atacassem mais no segundo tempo fazendo-os cansarem mais rapidamente e girassem mais a bola pra tentativa de ganhar a batalha no meio-campo.
Mas Mário havia me dado um nó tático ao colocar Kulik para marcar Muller não deixando-o jogar.
Tanto foi que tive que mexer no time na tentativa de retomar o controle do jogo.
Nada mais de relevante aconteceu e a partida foi pra prorrogação. A adrenalina estava alta demais e vi Mário organizando seu time pra tentar jogar com mais velocidade colocando um atacante mais descansado no lugar de Cheryshev.
Usei minha última cartada colocando Schurrle no lugar de Muller para municiar um pouco mais o ataque percebendo um certo cansaço nos russos que vieram de uma prorrogação taquicardíaca na semifinal.
“Quero ver como é que você sai dessa arapuca, maninho” pensei eu.
A prorrogação foi um jogo de xadrez entre Mário e eu. O time tomou alguns sustos em contra-ataques e num deles, Kulik acertou a trave e no rebote Smolov fez Neuer brilhar com uma grande defesa.
Mas o meio-campo alemão ganhou a batalha no setor e Kroos criou duas chances claras de gol com Lodygin fazendo monstruosas defesas.
Do jeito que as coisas estavam, sabíamos que a decisão da Copa do Mundo iria para os pênaltis.
Mário e eu estávamos quase afônicos de tanto gritar e cansados de tanto irem pra lá e pra cá nas nossas casamatas e o pequeno intervalo entre o fim da prorrogação e os pênaltis para descansarmos um pouco.
A marca da cal.
Já não bastava 120 minutos de agonia e loucura e agora teria que enfrentar os famigerados pênaltis pra chegar a grande conquista mundial.
Neuer era um bom pegador de pênaltis e confiava muito nessa habilidade, mas Mário também tinha Lodygin, outro especialista no ramo e sucessor digno de grandes goleiros como Lev Yashin e Dassaev.
Mas os deuses do futebol me impediram de realizar esse sonho.
Foi uma longa disputa de pênaltis onde praticamente todos os jogadores bateram e tanto Neuer como Lodygin fizeram jus a fama com cada um deles pegando três pênaltis e fazendo ainda os seus.
Tudo acabou quando Schurrle acertou o travessão na segunda rodada de cobranças alternadas e no momento seguinte, ecoou um único grito da torcida russa: “Campeão do Mundo, Campeão do Mundo, Campeão do Mundo”.
Foi meu irmão que havia conseguido a glória máxima de qualquer treinador.
A de ser campeão do mundo.
Fui consolar Schurrle pelo pênalti perdido e vi a torcida alemã me aplaudir de pé pela boa campanha.
Enquanto os jogadores russos faziam a volta da vitória para delírio da torcida, vi Mário sentado sozinho no banco de reservas chorando muito e com um retrato na mão.
Era da nossa mãe que morreu de câncer anos atrás. Ele tinha uns 13 anos na época e era muito apegado a ela.
Fui até lá e dei um abraço apertado nele deixando a emoção fluir depois de uma partida tão intensa como essa.
Nem percebi que todas as câmeras do estádio captaram esse sentimento entre nós e o mundo inteiro foi testemunha disso, incluindo meu pai e Luís.
Afinal, somos rivais apenas dentro das casamatas e somos irmãos acima de tudo.
Embora triste com a derrota, me senti um vencedor. Não moral como pregava Cláudio Coutinho, mas um campeão de verdade que aceita a derrota e parte pra uma nova tentativa.
Naquele instante em que o capitão russo Vasin ergueu a taça FIFA junto com Mário e os outros, percebi que vale a pena enfrentar as turbulências e a instabilidade da profissão de treinador para conseguir a recompensa de fazer parte da história do futebol.
E para Mário, mais ainda. Ele sim é um verdadeiro campeão por tudo que passou nessa vida.
A Taça FIFA estava em boas mãos.