O TRONO

Acordava a meio da noite,

- Fica a dormir.Eu venho já.Vou apanhar ar.Respirar um pouco.

Deixava a rainha no quarto e assombrado, percorria como que à deriva os corredores do palácio quase às escuras com candeeiros e apliques acesos com uma luz suave e muito discreta.

Os retratos a óleo, enormes e imponentes, pareciam olhá-lo do alto com sobranceria: Isabel a Católica e Fernando de Aragão, os reis que unificaram Espanha entre uma galeria portentosa de outros igualmente grandes.Os Filipes imperadores que governaram Portugal em finais do século XVI, princípios do XVII durante sessenta gloriosos anos.Os seus antepassados veneráveis.A sombra da História.Um peso ancestral de tradição e responsabilidade que lhe caíra nas costas com a sua subida ao trono.

“De onde quer que estejamos temos o direito de exigir total entrega e devoção à nossa Causa.A Monarquia”.

Filipe de Bourbon.Um metro e noventa e sete de altura,tinha sido baptizado pelo conde de Barcelona e por Victória Eugénia, rainha viúva de Afonso XIII recém chegada do exílio, sob o olhar vigilante do general Francisco Franco, chefe de Estado com a missão de devolver a Monarquia ao país devastado por uma sangrenta guerra civil.

O nome do então jovem princípe herdeiro era tão comprido que mais parecia um comboio com inúmeras carruagens a rolar numa via imensa – ah sim, Filipe João Paulo Afonso de Todos os Santos, conforme a melhor tradição real espanhola.

Com um pedigree impecável,Filipe chegou ao trono aos quarenta e seis anos com alguns escandâlos a pairar à sua volta a que era na sua maioria totalmente alheio

Talvez por isso as insónias.E o medo compreensível e terrível de fracassar.

Herdara uma colecção de descalabros em todos os sentidos: o pai a ser apanhado numa caçada ilegal com uma jovem com idade para ser sua filha e a partir daí a sua queda meteorítica em desgraça que conduzira implacavelmente à sua abdicação compulsiva,o cunhado num processo escabroso de desvios e corrupção financeira, a Catalunha endemoninhada e aos gritos a pretender a independência no meio de motins violentos e pasmo internacional.

A sua rainha consorte embora indiscutivelmente trabalhadora árdua e aplicada sem escapar à má-lingua insaciável devido à origem plebeia e ao seu passado matrimonial que quase se tornou um saco de socos dos leitores fieis da imprensa côr de rosa.

- Por muito que a Letizia se esforce as hienas não a largam – desabafava ele junto do seu circulo intimo de amigos.

Os súbditos já nem faziam uma vénia rasgada como a que os da velha rainha sua parente de Inglaterra se sujeitavam mas antes um simples cumprimento, quase um inaceitável descaramento com um relutante baixar de cabeça para manter as aparências.

E, no entanto,ele, o jovem Rei lutava até ao limite das suas forças por cumprir os seus deveres reais.Até ficar completamente exausto, desapontado e entristecido com a maré de adversidades e obstáculos.

Fora aliás considerado como um dos princípes mais bem preparados para o cargo.

Estudara em Espanha e no Canadá.Tivera formação militar no seu regresso à pátria.Licenciou-se em Direito e pós graduou-se em Relações Internacionais. Fala fluentemente quatro línguas.Conhecia o protocolo.

A partir de 2014, ao ser proclamado rei, converteu-se em capitão-general das Forças Armadas.

Mas entretanto os sobressaltos e as tentativas de o desacreditar e derrubar a monarquia não davam tréguas.

O rei emérito, Juan Carlos decidiu-se por um exílio dourado nos emiratos arábes para ver se o deixavam em paz.Toda a sua obra em prol da estabilidade da nação e da implantação da democracia fora desvalorizada e esquecida num abrir e fechar de olhos.

A rainha Sofia via-se sistematicamente envolvida em conflitos por vezes inexistentes com a nora e nem o seu profissionalismo incólume conseguia evitar a imaginação trepidante dos jornalistas sedentos de intrigas.

Helena divorciada com os cavalos e Cristina que teimava em manter estoicamente o seu casamento com Iñaki Undagarin, as infantas retiradas da fotografia oficial da família real espanhola não conseguiam ajudar muito - apesar do seu insistente e voluntário low profile - à respeitabilidade da instituição.

Mas até as meninas, suas filhas adolescentes Leonor e Sofia não deixavam de ser passadas a pente fino sempre que apareciam em público.Os vestidos, os sapatos, os penteados, enfim tudo era escrutinado até ao mais ínfimo detalhe.

Filipe não conseguia um minuto de tranquilidade e de regozijo porque as suas incubências e o panorama à sua volta se adensavam em progressão.

O Rei sem orientação aparente entrou na cozinha e deparou-se com o cozinheiro e dois ajudantes a trabalharem e que o olharam estupefactos.

- Dom Filipe, Senhor, deseja alguma coisa?

- Talvez só um copo de água!

- Levo já Senhor.

O Rei deu meia volta e saíu.

- Viram bem? Estava descalço.

A ajudante sorriu e limpou as mãos ao avental:

- Ah mas não deixa de ser ele.O nosso Rei.

E curvou-se numa perfeita e verdadeira vénia.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 26/08/2021
Código do texto: T7328889
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