O EQUILÍBRIO PRECÁRIO

Pedro saíu para a rua atordoado.Percorreu trémulo o passeio e o Sol meridional fê-lo piscar os olhos, procurar os óculos escuros e num passo inseguro dirigir-se às escadas do metro.Desceu-as rapidamente, desequilibrado e frágil.

Ela desaparecera sem deixar rasto.O telefone tocava interminavelmente no apartamento do grande prédio nos arredores.O mistério adensava-se.Os amigos intrigavam-se:

- Será? Será que lhe aconteceu alguma coisa? Sabes o quê?

- Nada. Absolutamente nada.Não a vejo há meses, não falo com ela há que tempos…

Pedro ajeitou a máscara de forma a tapar o nariz.Relançou o olhar pela gare, pelos outdoors e suspirou.O ruído estridente do comboio a aproximar-se e a travar.As pessoas alheias e indiferentes na pressa de entrar nas carruagens.Época de Covid e crise.E informação horrenda.Número de mortos e infectados.Risco.Debates e encandâlos.Corrupção tornada corriqueira e vulgar.O mundo um sítio duvidoso.Feio.Impossível de se viver.

Ela ponderou que tinha envelhecido e que o encanto e beleza se foram sem apelo nem agravo.Que o rendimento escasseava e diminuía com o tempo e com a inflação.Que se encontrava irremediavelmente só e acabada.Que tudo, a vida tinha passado num instante.Um instante muito breve.

Pedro acordou dos pensamentos lúgubres e chegou à avenida arborizada e à esplanada do restaurante onde combinara encontrar-se com Lúcia que já não via há dois anos, em parte por causa do confinamento a que a pandemia impusera.Esperou alguns minutos por ela.Espreitou no telemóvel as notícias dos actores vítimas de AVC e paragens cardíacas por excesso de trabalho nas telenovelas dos canais generalistas.Caíam para o lado como tordos.Finalmente descortinou Lúcia a aproximar-se lentamente, apoiada na canadiana e sorriu.E pensou “Quem nos viu e quem nos vê!Que grande diferença”

Ela reviu num segundo a sua vida , carreira e amores passageiros.Olhou-se ao espelho nos seus sessenta e muitos com o cabelo sempre pintado de louro há quarenta anos, a sua altura diminuta, a arma do seu sorriso conquistador,a sua fala sofisticada com os rrr proeminentes, os saltos altíssimos que sempre usara para fazer destacar a sua presença, o efémero e fugaz.

Pedro e Lúcia, ambos de máscara cumprimentaram-se sem se tocar, sentaram-se na mesa reservada na esplanada do restaurante e encomendaram peixe grelhado e água mineral.Desenrolaram o rosário das trivialidades, evitando as questões sensíveis e delicadas do foro familiar.O ambiente caía sereno e a tarde instalava-se calma e amena.

Teresa foi buscar ao quarto o quit que tinha metodicamente preparado e levou-o para a casa de banho.Acendeu as velas perfumadas, passou um lenço pela lâmina do punhal,pousou o copo cheio de vodka no suporte e fez saltar os comprimidos acondicionados nas embalagens transparentes.Pôs a água quente a correr para encher a banheira até ao limite.

Ele observou Lúcia a puxar de um cigarro depois do café e aspirar o fumo como uma saída.

Perguntou-lhe pelas amigas, pelos amigos.

- E a Teresa?Que é feito dela?

- A Teresa morreu.Ainda não te tinha contado?

- Não!O que é que aconteceu?

Ela meteu-se no banho, até aos ombros.A água estava muito quente, quase ardente.Ela engoliu os barbitúricos um a um com a mão trémula e as lágrimas a correrem pelo rosto.Soltou um simples “ai” desesperado e cortou os pulsos com a faca afiada.Deixou-se deslizar na banheira, totalmente imersa e escorregou, escorregou até ao fundo, ao encontro do esquecimento.

- Suicidou-se.Encontraram-na dias depois e nem deixaram a irmã vê-la.

Ele sentiu-se arrepiado e mal.Recordou aquela figura gentil que tinha povoado festas e jantares no meio deles.Simpática e sempre pronta.Sorridente.Afinal um grande enigma.

Despediu-se de Lúcia e vagueou pelos corredores do grande centro com a cabeça a mil.Comprou um bilhete e sentou-se numa sala de cinema a ver um filme.Chamava-se “Supernova” e era um drama.

Teresa dos tempos irresponsáveis e tranquilos sorriu num grande plano por trás do écran quando os créditos passavam no final.Sorriu e acenou-lhe.Ele sorriu de volta, confrangido.As luzes da sala acenderam-se e ele saiu num andar errante e meio sonâmbulo em direcção ao metro e de regresso a casa.Pensou no equilíbrio precário em que as pessoas, todas as pessoas se movimentam.Na finitude dos dias.No terror.

Atónito,encarou-se a si próprio.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 24/08/2021
Código do texto: T7327477
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