Passado sem respostas

Em um final de semana de verão, em função de uma Gincana na sua cidade, Ísis resolveu sair da praia de carona com amigos, uma vez que pretendia deixar o carro para o irmão mais velho retornar mais tarde. No trajeto um grave acidente aconteceu e, dos quatros que estavam no carro, dois tiveram morte decretada no local. Ísis foi resgatada com vida e transportada para o hospital da sua cidade. Lá, face ao seu estado grave demais, uma ambulância a transportou para um hospital especializado em fraturas na capital. E lá ficou por três meses, contando com inúmeras fraturas pelo corpo, algumas até expostas, deixando o quadro muito delicado. Recebeu implantes metálicos no braço direito e no quadril esquerdo e, na cabeça um sério trauma que a deixou desacordada por 12 dias. Por muito tempo ficou grudada em aparelhos que buscavam colocar no lugar os ossos que se deslocaram. Ela mesma ria de sí chamando-se de “mulher biônica”.

Ísis era a única filha de Carlo e Teresa. A mais velha, na frente de dois homens. Sempre foi paparicada por todos e, de forma muito natural, retribuiu o que recebeu, pois teve uma infância e juventude rodeada por amigos, família e alguns namoricos. Era simpática, inteligente e, extremamente sensitiva.

Aos dezoito anos passou em um concurso do Banco do Brasil e, em paralelo, continuou cursando Arquitetura, abandonando o curso pouco tempo depois. Já mantinha-se financeiramente e, em parceria com uma prima, dividia um apartamento de seus pais na capital. A vida seguia tranquila, mas com muito a desbravar. Ísis sempre soube que tinha muito o que fazer, que havia urgência nos seus dias.

Aos vinte anos comprou o seu primeiro carro e, em poucas aulas, já tornou-se uma exímia motorista. Nos finais de semana circulava pela capital, pela sua cidade, distante a 70Km e pelo litoral, também muito próximo.

Resignada e sempre pensando que sairia daquela situação, saiu do hospital e foi para o apartamento, ainda sob os cuidados da sua mãe e da prima durante a noite. Duas das placas, em pouco tempo, foram rejeitadas e, infelizmente, ela teve que ser submetida à novas cirurgias, mas sempre de cabeça erguida e bom humor.

Em aproximadamente seis meses ela já começava a sentir a mudança. Já caminhava normalmente e conseguia tomar o seu banho diário, mesmo com o braço direito ainda imobilizado.

Retornou ao trabalho, aos namoricos e às risadas com a prima nos finais de noite. Até a canastra já havia retornado na mesa de jantar. O mundo estava voltando ao normal.

Em uma noite, carteando com a prima e uma amiga foi surpreendida com detalhes da sua vida que não lembrava. Aos poucos foi percebendo que as suas lembranças partiam do acidente. Fatos anteriores não lhe cabiam. Acabou fazendo incontáveis perguntas e todas as respostas foram surpresas. Aquietou-se e, no próximo dia resolveu ligar para o neurocirurgião que a acompanhou e, de pronto, comentou que a ausência de memória poderia ter sido causada pelo trauma craniano.

Mesmo assim, puxou-se por noites a fio para tentar resgatar uma ocorrência passada que fosse. Nada! Foram tantos meses para sua recuperação que, pela força da necessidade, decidiu iniciar a sua vida alí. E assim a fez!

Aquele vestido de organza, na cor verde água, com o busto milimetricamente bordado com lantejoulas prateadas, mangas bufantes transparentes e a gargantilha em strass nunca mais foi lembrado. Foi o vestido que Ísis usou no seu Baile de Debutantes. Nem mesmo o decote provocante de outro lindíssimo vestido, na cor marsala, com a cintura tão marcada como se ela estivesse vestindo um corselete, da mesma forma. Este foi o que vestiu na sua festa de quinze anos, coroada por um “Bolo ao Vivo”, com quinze amigas também com vestidos na cor marsala, mas em tons bem mais claros. As rosas nas suas mãos também eram da mesma cor e, contrastando com a decoração do Clube, toda em branco e prata, arregalaram os olhos dos convidados, tamanha beleza.

Mas a curiosidade foi maior e, em uma noite qualquer, sozinha no apartamento, abriu gavetas e e delas retirou as suas caixas de fotos.

Começou a entender o que todos falavam. Através delas acabou conhecendo a sua infância, a sua juventude, os eventos dos quais participou e até mesmo um homem, de estatura mediana, com lindos olhos azuis que, em uma foto, aparecia beijando-a na boca. No verso da foto a data de 12/12/1974, dois meses antes do acidente. Fechou a caixa e, sem pestanejar, resolveu tomar um Dormonid e recolher-se à cama mais cedo.

Escrito para a Oficina "Provocações" - módulo 06 - Editora Pragmatha

Rosalva
Enviado por Rosalva em 20/08/2021
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