Nenhum passo
A vida de Zaira, literalmente, nunca foi o manso lago azul contado pelos poetas.
Nasceu no interior, em família numerosa. Foi a quinta na escadinha do Seu Leonel e da Dona Maria. Atrás dela chegaram mais dois, totalizando sete filhos. Sua infância foi na roça, acordando cedo com os irmãos mais velhos para ajudar o pai pela manhã. No retorno, ocupava a tarde na escola e, por fim, dedicava-se ao cuidado dos irmãos mais novos. Tudo era um tanto mecânico, sem espaço para quaisquer devaneios pessoais.
Eram cinco homens e duas mulheres, a outra, fora Zaira, se chamava Lucia, a raspa do tacho.
Antonio, José, Isaías e Bento, os mais velhos, em função do pouco que lhes sobrava de tempo fora o trabalho, mantinham um grupo bem unido, já que iam para a escola juntos e gostavam de futebol. Próximo ao pequeno sítio no qual moravam havia uma quadra de várzea e para lá eles corriam em todos os horários de folga. Com o tempo aprenderam o esporte de tal forma que Isaías acabou sendo levado para a cidade grande por um olheiro. Virou jogador de time de base e logo passou a ganhar o suficiente para a sua subsistência.
Antonio, conhecido por ser bom de lábia, foi capitaneado pelo único empresário importante da cidade, virando vendedor de farinha de milho pelo estado. Muitos prêmios de vendas ganhou e, esporadicamente, retornava para visitar a família.
José, Bento e Valdir, o sexto, permaneceram no sítio ajudando o pai e, aos poucos, aumentaram a produção. Aos sábados encabeçavam a tenda de produtos naturais na Feira Livre da cidade. Já tinham até nome registrado junto à Prefeitura: “Sítio Porã – Produtos Naturais”.
Dona Maria era a única costureira da localidade e serviço não lhe faltava. Graças a Deus, foi o seu rendimento, mesmo pouco, que ajudou a manter a família numerosa.
Zaira passou, com o tempo, a ajudar a mãe nas costuras, uma vez que a demanda aumentou consideravelmente. O trabalho era tanto que ela entrava noite adentro em frente à sua máquina Singer, presente do irmão Isaías no seu aniversário de 17 anos. Não demorou muito para fazer um curso de modista e iniciar uma boa trajetória de trabalho. E Lucia não a acompanhava. Os três anos mais nova não lhe abriam os olhos para auxiliar a mãe e a irmã. Só queria saber da cidade. Saía da escola todos os dias e, de carona na bicicleta de João Pedro, seu colega, bandeava-se para a cidade em busca de não sei o quê. Pois um dia encontrou o que fazer. Em contato com algumas meninas que transitavam pela cidade, percebeu que poderia ganhar dinheiro fácil e, da descoberta para a realização foi um pulo. Transformou-se na prostituta mais bem paga do prostíbulo da Zona Oeste, sem olhar para trás. Largou família e foi aninhar-se nos braços pagos dos homens mais variados.
Zaira, quando descobriu, ficou tão chocada que prometeu para sí mesma que jamais deixaria a decisão da irmã ser do conhecimento dos pais. Mentiu que Lucia se apaixonou por um trapezista e resolveu partir com o circo para o Paraguai. Deixou os pais tranquilos que a irmã seguiu o seu coração e partiu feliz. E a vida seguiu no sítio.
Em certa manhã de novembro, ao acordar, Zaira percebeu que o seu pai ainda não estava em voltas com as ferramentas, como de costume. Foi ao seu quarto e o encontrou morto. Possivelmente tenha tido um infarto.
Providenciou o enterro junto com os irmãos, exceto Isaías e Lucia.
Retornou às costuras junto da mãe e a adolescência passou como um raio. Entrou na maturidade, sempre em frente à máquina Singer. Nada de novo, a não ser entregar as modinhas que ela inventava para as clientes. Tinha a impressão de que “inventar as modinhas” era a única invenção que o mundo permitia que ela tivesse.
Dona Maria já estava velhinha quando Zaira decidiu afastá-la da costura, em função de um dignóstico de Parkinson. Desencantada da vida entregou-se à cama. E lá continuou Zaira a costurar e cuidar da mãe e dos irmãos José, Bento e Valdir, já que não casaram e continuavam na agricultura. Cozinhava, lavava, arrumava a pequena casa, costurava e sonhava. Nada além disso.
Zaira não tinha muitos encantos, a não ser o seu rádio de pilhas e as suas idas à cidade de quinze em quinze dias para comprar linhas em um armarinho. Sempre era muito bem atendida pelo proprietário.
Certo dia, após muitos anos de suspeita, foi chamada por ele e, em meio às linhas, tecidos, rendas e afins ouviu juras de amor nunca ouvidas.
Apaixonou-se de pronto, mesmo o homem sendo vinte anos mais velho que ela. Mesmo assim não conseguiu entregar-se por completo, pois não podia deixar a mãe sem cuidados, mas quinzenalmente conseguia namorar e manter-se mais viva do que antes.
O desejo por manter um relacionamento estável e normal com ele a fez chamar os irmãos e propor um revezamento com os cuidados da mãe.
Decepção total, pois todos deixaram bem claro que ela, como a única mulher da casa, deveria incumbir-se de tudo. Alegaram não terem tempo e muito menos dinheiro. Zaira chorou, pois sabia que pelo menos Antônio e Isaías poderiam ajudá-la com uma cuidadora esporadicamente.
Resignou-se, terminou o relacionamento com o tal homem, nunca mais apareceu no armarinho e, por consequência, nunca mais costurou.
Perdeu o encanto pelo sítio, pela cidade e pela vida. Pela mãe ela tirou as suas últimas forças, até o seu falecimento, quinze anos mais tarde.
No enterro, no cemitério, ao olhar em volta da cova aonde sua mãe estava sendo enterrada deparou-se com uma sepultura forrada de granito cinza com o nome do proprietário do armarinho.
Chorou compulsivamente pela última vez, sem saber se pela morte da mãe ou pela resignação frente à vida, em especial ao amor.
Escrito para a Oficina "Provocações" - módulo 06 - Editora Pragmatha