O espelho de prata
Estamos na zona rural de Iguape em meados do século XX; no sítio agreste ainda não chegara a luz elétrica, o fogão a gás, a televisão e muitas outras coisas que fariam o encanto de todos nos anos vindouros. A casa era humilde, construção de taipa e coberta de sapé; na cozinha simples um fogão a lenha, pendurado do teto um defumador onde gordas tainhas, costelinhas de porco, nacos de carne eram postos para se entranharem da negra fumaça. Sobre a mesa rústica um filtro de barro, uma bilha e uma caneca para uso das visitas; na dispensa uma grande lata com banha de porco, meio saco de feijão colhidos na última safra, uma saca de arroz.
O menino tinha os seus brinquedos, todos feitos de barro pelo pai; Seu Antônio era um bom artesão, só que não sabia disso, com pouco estudo, o que conhecia era a realidade que o cercava; a onça, o tateto, o jacaré, a capivara, o macaco, o bicho preguiça, o tamanduá e outros animais da mata atlântica com os quais convivia, e entalhava para o filhote brincar.
- “Mãe, o que é morrer? ”, perguntou o guri.
- “Quem te falou em morrer, meu filho? ”
- “O homem do espelho, mãe...”
A criança possuía um espelho, um mimo antigo, parecia de prata, Seu Antônio o achara no Rio Ribeira, veio na rede junto com alguns robalos e tainhas; coisa fina, provavelmente caído de algum dos famosos navios piratas que no passado infestavam a região.
- “E o que disse o homem do espelho? ”, indagou a mãe.
- “Ele disse que vovô Pedrinho vai morrer amanhã picado por uma cobra venenosa...”
- “Te esconjuro, menino! Que Deus nos guarde, e não fique inventando coisas; é muito feio fazer isso...”
Vovô Pedrinho morreu as dez da manhã picado por uma jaracuçu, tio Alfredo caiu da canoa e se afogou, em um ano cinco pessoas da família partiram de modo estranho, e nenhuma por doença. O espelho avisou o menino de todas as partidas, e a criança sempre alertou a mãe sobre as ocorrências futuras.
O pai viajara para a cidade grande, era a época de vender a produção, os peixes defumados, a farinha de mandioca; a mulher pegou o espelho e pensou; - “Traste do demônio, só sabe inventar infortúnios, amanhã te jogo no rio...”, uma figura se formou no espelho; um ser sem rosto coberto por um albornoz, e ela ouviu nitidamente uma voz; - “ Amanhã chegará o corpo de teu marido, ele foi assassinado...”, a mulher desmaiou.
Agora estava sozinha, ela e o menino de seis anos; seu irmão mais moço Afrânio, descasado, e com um filho de dois anos se mudou para o sítio e tocava a plantação. A viúva se enfeitiçou pelo o espelho, ou foi enfeitiçada pelo mesmo; o vulto do espelho lhe contava histórias, falou de uma poderosa família do passado, eles moravam em outro país, foram poderosos, mandavam e desmandavam; gente que gostava de ver sangue correr, gente que voltou ao mundo para acertar velhas contas, agora todos mortos, e amanhã à tarde um raio mataria a mulher e o filho; o espelho lhe mostrou a fatalidade e a sua última mensagem foi a de que faltava apenas uma alma para acabar com toda a dívida karmica, a alma que ele próprio buscaria, e sua missão estaria completa... A mulher jogou o espelho pela janela.
A mulher e o filho estavam no roçado quando a tempestade os alcançou, se protegeram da chuva sobre a copa de uma velha árvore, e ali foram atingidos pelo raio fatal; os seus dois corpos carbonizados foram velados no rancho. Os parentes chegaram, muita tristeza... Paulinho foi até o quintal, não gostava desses momentos de despedidas; notou um brilho na lama, era um espelho antigo, parecia de prata, muito bonito e jogado fora, agora era dele e seguira com ele para a cidade grande.
Gastão Ferreira/2019