O camafeu

A cidade completara 480 anos de existência, muitas lendas se escondiam entre as grossas paredes dos velhos casarões, e todas as casas antigas estavam repletas das mais estranhas, sedutoras e horripilantes historias; histórias de índios fugidos, escravos açoitados, a ralé beijando as mãos de nobres nem sempre tão nobres, pedindo favores. Causos de donzelas apaixonadas, no tempo das donzelas. Causos de viajantes que chegavam de longe em navios mercantes e raptavam as moças casadouras. Lendas de ouro enterrado, mapas de tesouros nunca encontrados, invasão de piratas. Conversa de comadres ao entardecer, sonhos de partidas e chegadas que jamais se realizaram, lua cheia boiando no lagamar, vento leste refrescando a Princesa do Litoral.

O casarão dos Dias Franco, tido como uma das construções mais antigas, cuja origem remonta aos pais fundadores da cidade, está em péssimo estado de conservação; a madeira cedeu e o telhado desabou, as muitas tempestades arruinaram as portas e janelas, o mato sufocou as arvores frutíferas. Dizem que o velho solar é assombrado, e que as almas dos que nele viveram, desde os tempos de dantes, uma vez ao ano voltam todas à se reunirem no grande salão, ao lado da cozinha.

Jean Pierre Silva, mais conhecido por Jeps, morador de um bairro rural, perdeu a última condução para o Jairê; passara a tarde comemorando a despedida do ano velho, várias garrafas da famosa pinga “Paletó Vermelho” foram consumidas. Na cachaçada, invadiu o casarão dos Dias Franco e praticamente desmaiou no salão, acordando em meio a uma grande festa. Da parede pendiam vários lampiões a querosene, o som de uma viola caiçara indicava que a dança era na sala ao lado. Escravas, passavam com bandejas carregadas com os mais variados petiscos, meninos e meninas de rostos macilentos, e pálidos, com grandes e profundas olheiras, corriam pelo salão. Senhoras encurvadas pela idade espiavam o movimento das jovens de tristes feições e olhares vazios. Uma moça, trajando roupas antigas, se aproximou e puxou conversa: - “Vosmecê é um convidado do coronel Dias Franco?”

- Não! Nem sei quem é o coronel...

- É o dono desta casa...

- Impossível! Aqui é uma casa abandonada, não entendo o que está acontecendo...

- É que hoje, último dia do ano, nos reunimos aqui para comemorar e lembrar que um dia compartilhamos da vida física, neste belo solar...

- Eu bebi, passei dos limites, acho que estou tendo um pesadelo, e participando de uma festa temática, uma festa do nosso passado distante...

- A festa é real, nós os participantes estamos todos mortos...

- Meu Bonje!

- Reparou a quantidade de crianças pálidas correndo pela casa? Antigamente a mortalidade infantil era imensa...

- Sim, e tem também umas jovens de estranhos olhares, parece que nenhum dos presentes tem aspecto saudável...

- Tirando as pessoas idosas, todos as outras morreram de doenças incuráveis, ou acidentes; algumas assassinadas e outras por suicídio.

- Não acredito! E você, morreu do quê?

- Envenenada por engano... Se você não acredita, amanhã consulte um livro sobre a história da cidade, meu nome está lá; veja nesse camafeu, olhe o meu retrato, sou Ivanilde Teresa Dias Franco, primeira professora da vila, ano de 1539... Aproveite a festa, e prove dessa cachaça com cataia, é uma invenção nossa, e está fazendo sucesso.

Jeps, emborcou a taça de cataia, aliás várias taças, a bebida subiu rápido, e ele apagou. Acordou com o sol a pino, cabeça latejando, na maior ressaca, foi na padaria tomar um café; - “Bom dia, Jean Pierre! Bonita medalha, ganhou de quem?”, perguntou o padeiro.

Jean tirou a corrente do pescoço, abriu o camafeu. Dentro a pintura de um rosto jovem e uma dedicatória – Para a professora Ivanilde Teresa, uma lembrança de seus alunos – Iguape/1539.... Jean Pierre Silva, mais conhecido por Jeps, desmaiou.

Gastão Ferreira/2018

Gastão Ferreira
Enviado por Gastão Ferreira em 14/08/2021
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