QUEIMANDO LIVROS COM BRADBURY
 
Para ele, tornou-se um prazer especial ver as coisas serem devoradas, ver as coisas serem enegrecidas e alteradas. Parecia se deliciar com as páginas que se enrugavam e murchavam e morriam conforme as línguas vermelho-vivas saboreavam o gosto de cada palavra já escrita. As mãos entrelaçadas em frente ao rosto se igualavam aos gravetos inextricáveis que ardiam como varinhas de fogo, e, apesar das cinzas que lhe feriam a face, ele mantinha os olhos fixos nos finais derradeiros de tantas histórias, esse impensado incêndio literário se refletindo nas lentes dos óculos.
Desde que ele a tinha buscado no trabalho e a trazido àquele descampado, não tinham trocado nenhuma palavra. Aquele silêncio, diferente daquele de quando se deitaram para olhar as estrelas, era desconfortável. Ela queria perguntar o que havia acontecido, qual era o motivo daquele surto e daquela fogueira que queimava não apenas todos os seus livros e escritos, como também tudo o que Ray já havia sido. Talvez fosse justamente isso: uma tentativa de apagar qualquer resquício de quem ele era. Mas por quê? Ela tinha medo de perguntar. Sabia que mais adiante descobriria esse mistério, mas, ali, naquele instante, sabia que ele precisava de seu silêncio. Seu silêncio e o crepitar gritante das chamas que consumiam e comiam e saciavam toda sua sede de destruição com aqueles volumes.
Enquanto sentia o cheiro dos nomes queimando — Poe, Wells, Verne, Burroughs, Bradbury —, cheiro mordaz que ainda poderia ser tragado da sua pele dias depois, ela se aproximou dele, apreensiva. Com delicadeza, embrenhou seus dedos no meio daquelas mãos de gravetos, na tentativa de recuperar, entre seus borralhos, o escritor dos rabiscos que se extinguiam.
— Queimar é prazer. — O tom grave e rouco de Ray efervescia dor e decepção. Como se não existisse uma fogueira abrasadora à sua frente, ela se arrepiou, a frieza daquelas palavras traçando uma trilha de pólvora por todas as suas terminações nervosas.
Ela apertou com força a mão dele esperando que ele respondesse a esse estímulo com a mesma intensidade. E, embora um suspiro tivesse escapado do peito amarrotado de Ray, sua mão permaneceu estática e gelada.
As labaredas do fogo cresceram subitamente quando encontraram novas páginas a serem queimadas, erguendo-se até o céu e cuspindo confetes ardentes, como se estivessem comemorando aquela morte, alimentando-se de palavras que, um dia, significaram tanto e, agora, se perderiam em cinzas e brasas.
O que estaria se passando dentro daquela mente? Ela o conhecia tão bem — seus pensamentos, seus trejeitos, seus gostos —, entretanto, ao perscrutar atrás daqueles escudos de vidro, não conseguia reconhecer seu escritor nos olhos flamejantes. O que ela via era aversão, sofrimento e raiva. Muita raiva.
— O fogo limpa, sabe? Transforma. E é muito mais lindo à noite.
De fato, a beleza daquela fogueira se sobressaía ao que, na verdade, representava um horror e uma afronta a tudo aquilo em que Ray acreditava — ou em que teria acreditado até então. Sem dó, as chamas pintavam aquele quadro negro da noite como pincéis tortuosos e destruíam o sangue preto de pessoas que se verteram em folhas de papel. Completamente extasiado, ele observava a cremação dos cadáveres de livros que já estiveram vivos.
— Se eu pudesse, queimaria junto.
— Não diga isso... — Quase que se quebrando, a voz dela saiu frágil: um filete de desespero e de receio ao que estava acontecendo com o homem que admirava. — O que foi?
Ele não respondeu. Novamente, aquele silêncio fulgurante. O crepitar das páginas. O grito de escritores. A quebra de parágrafos e de orações e, então, de palavras que não mais representavam um todo.
Por fim, ele apertou a sua mão.
— Queime-os ou eles o queimarão.
Marina Solé Pagot – 18 anos
Enviado por Ilda Maria Costa Brasil em 13/08/2021
Código do texto: T7319987
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