Dona Eulália

Dona Eulália possuía longos cabelos. Sempre presos em um coque no centro superior da cabeça e fazia questão de tingí-los de preto, para combinar a cor com as roupas que vestia impecavelmente passadas e cuidadosamente vestida para esconder todas as partes do corpo que considerava vulgar. As únicas partes que ficavam à mostra eram suas mãos e seu rosto. Andava com uma postura impecável, apesar dos seus setenta anos, não encurvava a coluna, sempre ereta e com a cabeça levantada para que seus olhos alcançassem tudo o que as pessoas gostavam de esconder.

Fazia questão de morar na mesma casa onde criou seus filhos e hoje habita sozinha, sendo visitada poucas vezes por seus dois meninos que já não vão com tanta frequência pois têm medo do julgamento da mãe. Ela sempre opinava severamente sobre a vida deles e como deviam prosseguir. Esta senhora se sentia tão pertencente à casa que os móveis já se tornaram parte do seu próprio corpo, limpava-os com frequência mesmo sem nenhuma poeira. Quando escutava a voz de seus netos, subia um arrepio nas costas de pavor, tinha muito medo que as crianças quebrassem algo que para ela era muito valioso.

Assim como os muros altos da casa, Dona Eulália possuía um muro extenso em seu coração, ninguém entrava, a única pessoa que habitava para além desses altos muros era ela mesma e assim estava feliz. Não dividia a sua paz com ninguém, por isso fazia questão de tirar a tranquilidade de muitos. A sua religião dava a ela o poder de juíza. Sentia prazer em julgar as pessoas e principalmente saber que essas pessoas estavam conscientes da sua opinião, não gostava de esconder suas ideias.

Toda essa fortaleza estava com os dias contados. Assim era o que se esperava depois que essa senhora passou pelo mais terrível dia da sua história. Um acontecimento que sensibilizaria qualquer alma e transformaria qualquer personalidade.

Dona Eulália acordou assim que o sol começou a clarear o seu quarto. Levantou lentamente, ainda com os cabelos soltos, e foi para o banheiro onde tirou sua camisola e rapidamente vestiu seu costumeiro vestido preto. Ela não gostava de enxergar o próprio corpo, por isso vestia-se velozmente e abotoando cada botão com uma firmeza medonha. Pentear os cabelos era um ritual à parte, sentava-se em um banco na frente do espelho redondo que refletia apenas sua cabeça e começava desembaraçar. Apertava o seu coque com com destreza e para deixar os fios todos em seus devidos lugares, passava uma pomada que lustrava os pretos dos cabelos.

Antes de quebrar o desjejum, foi até seu quarto, ajoelhou-se frente à imagem da Virgem Maria, e com as duas mãos segurou seu terço. Naquele momento era uma fervorosa cristã professando a sua fé e pedindo à divindade que permanecesse a sua alma pura e santa aguardando os dias finais.

Após longos minutos de oração e o café tomado, Dona Eulália saiu com a sua carteira na mão, prego nos olhos e o martelo na língua, pronta para pregar na cruz do julgamento a primeira alma distraída.

Andou pela avenida movimentada de sua vila, onde os comerciantes já a conheciam e sabiam da sua altivez. Sempre que Dona Eulália passava, no mesmo instante todos fingiam estar trabalhando para fugir dos olhares penetrantes e dos julgamentos impiedosos. Entrou na vendinha que já estava acostumada. Andou pelas bancas, sempre carregando aquela feição de séria e pronta para desferir seus comentários cortantes em alguma pessoa que passasse inocentemente ao seu lado.

Foi assim que aconteceu. Uma mulher de cabelos soltos e roupas curtas entrou na venda e perguntou ao dono onde estava as verduras e também indagou se estavam frescas. O senhor respondeu que sim e com o dedo apontou para a direção onde Dona Eulália estava estática com os olhos fixos na mulher. A mulher foi se aproximando em direção à banca de verduras e começou inconscientemente arrumar suas roupas, puxando para baixo sua saia que de acordo com os olhos daquela senhora estava curta demais. Era esse o sentimento que aqueles olhares traziam para as pessoas: vergonha e timidez. Por mais livre e cheia de si a pessoa possa ser, aos olhos de Eulália tudo se desmoronava.

Nitidamente, para todos perceberem, Dona Eulália fixou seus olhos nos pés da moça e foi subindo lentamente até que encontrassem os olhos envergonhados da mulher. E logo, após analisar toda a vestimenta, ainda encarando-a, virou-se para o lado e com o tom da voz em forma de sussurro disse a outra pessoa que nem sabia quem era:

— Ainda tem gente que acha isso bonito… Pernas feias.

Parou com o julgamento e continuou a escolher suas alfaces. A mulher provavelmente escutou essas palavras e já não sabia o verdadeiro motivo que a levou até aquele lugar, passou os olhos pelas verduras e escolheu qualquer uma, com pressa, queria sair daquele lugar o mais rápido possível.

No caminho de volta para casa, essa cena já nem ocupava um segundo da memória daquela senhora, mas criou uma marca inapagável na alma daquela mulher. Quem corta esquece, mas quem é ferido precisa cuidar dos cortes para não infeccionar.

Entrou para dentro de sua casa, assim como fizera anos e anos, sempre repetindo a mesma rotina, até que viu algo de estranho. Ao entrar pelo portão, percebeu que a porta de sua sala estava aberta. Estranho… Trancar as portas é o costume mais rígido que possuía. Já levantou as orelhas, esperando ouvir os gritos dos netos ou dos filhos, o mais novo ainda possuía as chaves da casa. Mas o silêncio continuou.

Pé ante pé, entrou sem fazer nenhum barulho e viu que sua sala estava vazia, sem nenhum sinal de filhos e netos. Chegou a conclusão de que já estava ficando esquecida, precisava tomar mais cuidado. Enquanto entrava normalmente em direção à cozinha para guardar suas compras, sentiu uma pancada forte atrás de sua cabeça que não deu tempo de se virar e nem de gritar socorro, desmaiou.

Seus olhos abriram lentamente e não conseguiam enxergar muita coisa, apenas conseguiu distinguir um rosto bem frente ao seu. Os olhos encaravam os seus e carregavam uma nuvem de ódio. Até o seu olhar teve que se submeter àquele semblante. Sabia o que estava acontecendo, não era ignorante. Agora era esperar e implorar pela sua vida.

O homem aparentava possuir trinta anos. Cabelos crescidos até o ombro, castanho claro, camisa branca e uma calça jeans. Não se preocupava em esconder o seu rosto. Nas mãos carregava uma faca que Dona Eulália reconheceu ser sua. Na cintura, um revólver aparecendo.

O homem andava de um lado para o outro, parecia não saber quais seriam as suas ações. Em alguns momentos parava, se agachava e encarava Eulália nos olhos. A senhora estava sentada no chão, com as mãos amarradas nas costas. Sua boca estava livre e seus pés também, mas a ideia de fugir nem se passava por sua cabeça.

Após alguns minutos daquele insuportável silêncio, Dona Eulália decidiu quebrá-lo pensando dar um fim em seu sofrimento, caso o foco do rapaz fosse o dinheiro:

— Está atrás do quadro no meu quarto… O dinheiro.

Assim que suas palavras saíram de sua boca, o homem parou como uma estátua virado de costas e nada respondeu. A senhora viu que ele apertou a arma em sua mão com mais força e se arrependeu de dizer aquelas palavras. Ele virou lentamente e foi em sua direção com a faca apontada, abaixou e aproximou seus olhos bem próximo aos dela e disse como um sussurro.

— Dinheiro seu eu não quero.

Logo em seguida ela sentiu mais um impacto em sua cabeça, ele havia desferido um soco na lateral, bem na orelha. Sentiu tudo rodar, mas não caiu. Nesse momento ela imaginou inúmeras possibilidades. Nenhuma reza passava por sua cabeça, o desespero não deixava. Até o segundo soco veio bem na sua boca, onde sentiu sua dentadura quebrar-se e entrar em sua gengiva. O gosto de ferro do sangue preencheu a sua boca.

O homem percorreu a casa toda, revirando tudo o que poderia e quebrando todos os móveis que encontrava. Cada pancada que dona Eulália escutava, era uma parte de seu coração que estava sendo quebrada junta com os móveis. O que esse homem esquisito queria em sua casa? Essa pergunta martelava em sua cabeça e a dor dos ferimentos começou a aparecer, o sangue estava esfriando.

Após minutos que pareciam horas, o rapaz veio novamente e sem explicações segurou a boca e nariz de Dona Eulália com a intenção de sufocá-la. As vistas escureceram e ela desmaiou, achando que aquele seria seu último momento viva.

Acordou depois de longas horas em uma cama de hospital. De início, não reconheceu o lugar onde estava e depois foi lembrando de todos os acontecimentos. Seu filho explicou que a encontrou no chão da sala desacordada. Tentaram de todas as formas procurar o criminoso, mas não achou. Nenhum dinheiro foi roubado.

Existem acontecimentos que mudam a nossa vida. Há problemas e provações que transformam as pessoas e seus modos de enxergar a vida. Mas com Dona Eulália não foi bem assim.

Três meses se passaram. Ela acordou e fez o mesmo ritual de sempre, se arrumando, rezando e saindo pronta para ir em busca de uma alma desprotegida para poder crucificá-la. Nunca se soube qual foi o verdadeiro motivo desse agressor entrar em sua casa, quebrar tudo e machucar Dona Eulália. Mas, assim como as coisas espirituais, há muitos mistérios que só os santos entendem.