Isabel, a anta

Mafalda desde garotinha sonhava em receber um título de nobreza; seu sangue era pobre, mas papai o tornou nobre. A guria desenhava corações, sempre com tinta azul, a cor do sangue que papai comprara no mercado da politicagem. Quem primeiro levou um tapa na cara foi a criada Maria Rita. A escrava teve a ousadia de retirar da mesa, a outra metade do bolo de festa, o qual Mafalda devorara a outra metade;

- “Marya Rytha! Devolva imediatamente o meu bolo.”, gritou a criança, e tascou um tabefe na velha mucama.

- “Nhanhá não pode agir deste modo! Eu também sou uma filha de Deus.”, disse a escrava.

- “Cala a boca, traste velho! Prova que eu toquei em você, prova e eu mando te açoitar...”

Mafalda cresceu, engordou, emagreceu, ficou loira, virou morena e novamente loira; sua mão foi vendida a peso de ouro a um jovem da corte. O mancebo só estava interessado na mão da donzela, e assim, casando por procuração, jamais a procurou. Cercada de serviçais Mafalda envelheceu amargurada e esnobe, morreu sem saber que a mucama Maria Rita era uma feiticeira e que havia há muito tempo lançado uma maldição... O tempo passou.

Mafalda agora é Isabel; vida boa de quem nasceu em família de posses. Poderia ser uma pessoa esclarecida, generosa, gentil... Mas a antiga Mafalda ainda dormia dentro de Isabel, pois um corpo é uma veste, e a alma é sempre a mesma. Alma de anta em corpo de capivara... Triste Isabel!

No vilarejo havia uma festa, festa de pobre, é bem verdade; as pessoas vinham de muito longe para admirarem uma pedra que caíra do céu há muito tempo. Chegavam em canoas, barcos, cavalos, mulas, carros, motos, bicicletas, de muletas e sem muletas. Naquele ano, Isabel foi encarregada de organizar a festança... E a maldição da escrava Maria Rita, ocorreu.

Isabel já não era uma mocinha, digamos que estava com um pé na quarta idade, a melhor das idades para provar de todas as dores, tanto físicas quanto morais. Idade em que as pessoas sabem com certeza de que nada levarão deste mundo, fase de colher o que se plantou durante a mocidade, época de serenar o espírito, e cuidar para não ferir nem ser ferido.

Isabel poderia ser eleita a “Musa da Festa”, mas a antiga Mafalda falou mais alto; xingou, gritou, fez barraco, fez beicinho, se fez de vítima. Manchou o bom nome do vilarejo, o título de “Miss Simpatia” foi para o brejo, e o de “Musa” nem pensar. Isabel vai ficar na história, no lado escuro das lendas urbanas... Maria Rita, a escrava feiticeira, sabe que madame Isabel vai morrer, e que um dia voltará com outro nome... Quem sabe, nesta nova chance de aprendizado, Mafalda e Isabel retornem modificadas, e a nova personagem, Monica? Mariana? Belmira? O nome que seu espírito imortal escolher, seja ele qual for, renasça humilde e seja feliz.

Gastão Ferreira/2017

Gastão Ferreira
Enviado por Gastão Ferreira em 12/08/2021
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