Escada para lugar nenhum
Quando eu era criança, antes de completar cinco anos de idade, adorava dormir; mal fechava os olhos e estava fora do meu corpo físico, era a tal viagem astral, e eu saía voando pelo mundo, feliz da vida. As vezes visitava uma praia deserta, outras passeava pela mata espiando os animais noturnos e em algumas ocasiões visitava um antigo casarão do qual eu nada sabia, aliás, nem imaginava o seu endereço.
Um solar imponente, imenso, talvez a sede de um engenho de cana de açúcar, ou de uma fazenda de café, nunca fiquei sabendo; o que me atraia na casa era a escada que unia os dois pavimentos. Era ampla, larga, contida entre duas paredes altíssimas, e coisa estranha, eu não conseguia ver aonde ela terminava.
Lembro que eu empacava no início da escada, e uma voz me dizia; -“Pare! Não suba...”, eu ficava um bom tempo sentada no primeiro degrau, e ouvia passos invisíveis descendo por ela, pessoas que eu não podia ver passavam através de mim, e eu não sentia nenhum medo, apenas curiosidade.
Fiquei meses sapeando o solar, e sempre sentava no primeiro degrau da escada para lugar nenhum. Na última visita cometi um deslize; havia uma boneca largada na escada, e perto dela a cabeça de um outro boneco...
Na minha inocência, pois eu era uma menininha de quatro anos e dez meses, quase cinco anos, peguei a boneca e então notei um vulto no lugar mais alto da escada; uma estranha garota com uma faca na mão, olhos tentando me enxergar na escuridão, sai voando e acordei apavorada na minha cama, e ao meu lado estava a boneca da escada.
Tentei várias vezes entrar no casarão, mas sempre que passava da porta, avistava a menina fantasma, e ela me mostrava a faca, e parecia dizer; - “Devolva a minha boneca, traste! ”
Nunca contei para ninguém que em menininha eu voava ao adormecer; somente na adolescência é que fiquei sabendo que eu praticava viagens astrais, e ao entender o que eu fazia em criança, o dom já tinha desaparecido por completo, e foi um susto que impediu as minhas futuras viagens, e eu nunca mais consegui sair conscientemente do meu corpo físico.
A garota do casarão estava me aterrorizando, não sei como ela descobriu o meu endereço, e toda a noite ela vinha me importunar; puxava os meus cabelos, me beliscava, me empurrava para que o meu corpo caísse da cama; estava tornando a minha vidinha de criança feliz em um inferno, e quando eu finalmente dormia, ela me seguia através dos sonhos.
Eu não sabia o que fazer, quem viajava era eu em espírito, não entendia como ele imaterial transportara uma boneca sólida para o meu quarto; desconhecia o endereço do casarão, não tinha conhecimento de como se processava o fenômeno de transporte astral, não podia contar para ninguém, pois diriam que eu estava louca.
Resolvi enfrentar a situação, e forcei a barra; a noite entrei no casarão e sentei na escada. Os passos se aproximaram, senti uma respiração ofegante e a menina visagem murmurando; -“Devolva a minha boneca, traste! ”, “Vá até a minha casa e pegue a maldita boneca, infeliz! ”, eu consegui sussurrar.
Num piscar de olhos estávamos dentro do meu quarto, a menina fantasma pegou a boneca e falou; -“Sorte sua nunca ter subido a escada...”
- Por que, o que tem no fim da escada?
- Não tem nada, ela leva à lugar nenhum; se tivesses subido terias desaparecido para sempre, traste! Adeus para nunca mais...
E desde aquela noite eu nunca mais consegui lembrar de um sonho e muito menos de uma viagem astral. Tenho um desejo para realizar, encontrar o casarão; ainda quero subir fisicamente aquela escada e descobrir para onde ela me levará.
Gastão Ferreira/2019