Tia Milde
Quando tia Milde endoidou, vovô Martim a trancou no porão; - “Uma família da alta sociedade não pode manter a solta e aprontando na freguesia uma biruta, uma endemoniada, que ela fique escondida no porão enquanto a cura dessa doidice não for descoberta. ”, assim falou o poderoso senhor de engenho e chefe de família, coronel Eufrásio Martim.
Fechavam portas e janelas da casa grande afim de abafar os gritos, os uivos de tia Milde; eles ocorriam durante a lua cheia, e as escravas do casarão diziam que ela fora encantada por um lobisomem. Vovó Muriel afirmava ser mentira das negras, história para boi dormir; - “Milde era pura e inocente, algo aconteceu e seus nervos, tão sensíveis, entraram em colapso...”
Desde o dia em que tive uma crise de riso em pleno culto, o padre ordenou que só quanto eu virasse gente poderia frequentar a igreja novamente. Vovô não gostou, mas padre era padre, e ele nada podia contra a poderosa santa madre. Assim, quando a família se dirigia à igreja para a missa diária, eu ficava sozinho no casarão.
A primeira coisa que eu fazia era visitar a tia Milde; - “Meu sobrinho predileto, o único que não zomba da minha desdita, que bons olhos o vejam...”
- Tia Milde, estou confuso, vovó Muriel diz que a senhora tem os nervos fracos, vovô coronel afirma que a senhora é louca varrida, e as escravas juram que é uma encantada; quem tem razão, titia?
- Eu mesma não sei, vou contar o que me aconteceu e você mesmo pode chegar a uma conclusão, mas não comente com ninguém o que vou narrar, pois com certeza dirão que sou uma débil mental...
- Conta tia, serei um túmulo!
- Pois saiba que tudo aconteceu em um túmulo...
- Creio em Deus pai, no cemitério?
- Sim, eu costumava acompanhar tia Emerenciana em sua visita semanal aos nossos antepassados...
- Tia Emerenciana, aquela que foi raptada pelos piratas e conseguiu pular do navio, mas foi meia devorada pelos tubarões? E por esse motivo, seu caixão foi lacrado...
- Sim, ela mesma! Tia Merê, a irmã mais nova de mamãe Muriel.... Ela não foi raptada pelos piratas e muito menos atacada por um cardume de tubarões famintos...
- Não me diga, titia! E por que inventaram uma história tão trágica para tia Emerenciana?
- Coisas de papai! O coronel tentou esconder o amor proibido da filha donzela pelo filho de um humilde sitiante...
- Caramba!
- Tia Merê se encontrava as escondidas, sempre a noitinha, e no cemitério com o jovem Cristóvão; foi lá que fomos atacadas por um lobisomem em uma noite de lua cheia. Cristóvão e Emerenciana dilacerados pela besta-fera, eu escapei incólume; era a noite dos meus quinze anos.
Desde aquela conversa com tia Milde, minha curiosidade falou mais alta, e comecei a investigar sobre o ocorrido; a escrava Mabel de Oxum-maré, foi minha ama de leite, minha segunda mãe, minha confidente, e foi ela quem me contou algo muito estranho. Contou de um personagem misterioso, e do qual ninguém falava na minha família...
Ele veio de longe, se dizia sobrinho de vovô coronel, e nas noites de lua cheia se transformava em lobo, apaixonou-se por Milde, então uma pré-adolescente... A guria começou a ficar anêmica de uma hora para a outra, as escravas descobriram que o moço sugava o sangue da jovem; contaram ao coronel, e o rapaz desapareceu misteriosamente para sempre.
O que quase ninguém sabe é que todo aquele que é mordido ou arranhado por um lobisomem, fatalmente um dia, após completar quinze anos, também se transformará na fera. Depois das confidências de tia Milde, entendi o que realmente aconteceu; naquela noite no cemitério, quando tia Emerenciana se encontrou furtivamente com Cristóvão, uma noite de lua cheia, foi a noite em que tia Milde completou quinze anos...
Estou um tanto angustiado, semana que vem será meu aniversário, meus quinze anos; em uma das visitas que fiz à tia Milde, sem querer ela me arranhou, e depois sorriu e disse; - “Meu sobrinho predileto, bem-vindo ao clube! ”, juro que não entendi...
Gastão Ferreira/2019