O Solar das Andorinhas
A construção é antiga, as grossas paredes foram erguidas com conchas moídas e óleo de baleia; lar dos Antunes Amorim, todos os meus ancestrais aqui viveram, ainda se vê a marca do nosso brasão familiar frente ao palacete secular.
Os Amorins marcaram a história da cidade. Grandes exportadores de peixe, farinha de mandioca, esteira de pirí; meus antepassados aprearam índios, compravam e vendiam escravos africanos, e em tempos não tão remotos se apossaram do cofre municipal.
Hoje sei que foi o luxo, a arrogância e a ociosidade quem nos corrompeu; sou um velho sem descendentes. Vivo sozinho, provavelmente o último da linhagem dos antigos senhores de engenho desta paragem, e o único proprietário do Solar das Andorinhas.
O Solar das Andorinhas, refúgio dos pássaros migratórios, colibris e morcegos; suas muralhas guardam memórias de segredos tenebrosos, e a noite elas escapam das paredes e vagam pelos corredores vazios, conversam entre si, contam histórias, relembram o passado.... Quase não durmo, os fantasmas invadem os meus sonhos, eles sabem que eu os vejo e ouço, e fazem questão de me perturbarem mostrando fatos que ocorreram no casarão.
Entrei na cozinha bem no momento em que tataravó Eleonor jogou banha fervente no rosto de Ritinha Cega, na verdade foi a banha quente quem a cegou. Vingança da tata, pois o tataravô andava enrabichado pela linda mucama.
Nossa árvore genealógica tem muitos galhos, e muitos deles podres. Uma antepassada, meu sangue, fugiu com um escravo e foi morar nos Itatins, seu pai descobriu e mandou um capitão do mato na captura do negro fujão, ele voltou com a cabeça do cativo, e com um menino de três anos. O menino foi o primeiro senhor de engenho que teve a fama de ser lobisomem, e eu sou seu descendente.
Cada cômodo deste solar conta uma história, algumas alegres, outras tristes; abortos forçados, muitas lágrimas, amores desencontrados, casamentos combinados, ódios e rancores disfarçados em risos e salamaleques. Formas pensamentos grudando nas paredes e se transformando em visagens, assombração, medo do escuro.
Teve uma noite em que todos os meus antepassados, todos os moradores do Solar das Andorinhas se reuniram, passado e presente se misturaram. Tivemos um fandango ao som de violas caiçaras, serenatas, valsas, serestas, música antiga e música moderna.
Estavam presentes os arrogantes senhores de engenho, eles nem olhavam para os seus avós, humildes pescadores e algumas índias medrosas, que de olhos baixos examinavam um por um os seus inúmeros descendentes. Meu pai estava presente, me abraçou, disse que mamãe não veio a festa, pois não era sangue dos Antunes Amorim.
Fui até o terraço, mamãe estava no jardim, e me acenou; corri ao seu encontro, mamãe moça nova e eu tão velho, coisas que não sei explicar. Mamãe me abraçou, me mimou, quase chorei; - “Meu menino sonhador! Prisioneiro do Solar das Andorinhas, eu vim te buscar. Aproveitamos que todos estão na festa, e a casa está ocupada com tantas memórias, vamos fugir para longe, andar na praia, voar sobre as montanhas, espiar o lagamar.... Venha filho! Hora de acordar do pesadelo. ”
Gastão Ferreira/2019