Lembrando o Tigrão
Conta a lenda urbana que na Princesa, há muitos e muitos anos, viveu uma moça muito fogosa e namoradeira, tipo aquelas donzelas assanhadas que dantes as senhoras puritanas, sempre atentas a moral e aos bons costumes, chamavam de “ menina da pá virada. ”
A rapariga de nome Iselda, paquerava de longe o filho do coronel Estônio Fonseca, coronel de infeliz memória, e pelo que se sabe, foi ele o primeiro chefe de polícia caiçara a proibir a “malhação do Judas” nos festejos carnavalescos, alegando que os foliões faltavam com o devido respeito aos políticos locais, pois sempre colocavam no boneco do Judas o nome de algum vereador e por vezes até mesmo o nome do próprio senhor alcaide.
O filho do coronel Estônio, de nome Manfredo Fonseca, mancebo muito prendado, sabia bordar, passar e lavar, cultor de todas as musas, era ator de teatro amador, e adorava bolar fantasias para enfeitar casas comerciais, ruas e festejos cívicos, no dizer popular, um mestre nas agulhas, paetês e purpurina. Muito estimado nas calientes noites da pequena cidade, era tido como o melhor partido local, e seu famigerado pai o queria casado, e respeitado.
Quis os fados que Manfredo se interessasse por Iselda, e assim a rapariga encontrou a porta para sair da miséria e brilhar na alta sociedade. Como nada na vida é perfeito, existia um probleminha; Iselda tinha um amante secreto, o Gregório. Como assim, um amante secreto? É que o pescador Gregório era casado, e ninguém podia saber que ele pulava o muro, pois pertencia de corpo e alma aos servos do Senhor, e servo do Senhor quando pego com a boca na botija, era condenado ao fogo do inferno.
Iselda casou com Manfredo, foi o casamento do ano, celebrado pelo senhor Bispo, e com a presença da elite, do povo, povão e povinho. Todos ganharam uma lembrancinha, aliás confeccionadas com o maior carinho pelo próprio noivo; os ricos da cidade receberam uma corrente de ouro com uma medalha de prata com o rosto do jovem casal, povo e povão um retrato dos nubentes com dedicatória e o povinho um belo pôster do casal almoçando num restaurante chique, com a dica de que colocassem a foto como enfeite na parede da sala de suas pobres casas.
O casal passou a morar fora do centro histórico, lugar sossegado, chácara de altos muros, vigiada dia e noite por Tigrão, um feroz cão de guarda. Daqueles que estraçalham pipas, bolas, e visitantes indesejados que ousam ultrapassar os muros de uma propriedade particular.
O amor é cego, mudo, surdo, sacana e ousado; Iselda continuou se encontrando com o pescador Gregório. Mal o maridão saia para cumprir suas obrigações no gabinete do papai coronel, Gregório se esgueirava para dentro da chácara; com o tempo Tigrão virou um grande amigo, e até dava o sinal de que Manfredo estava para chegar, e assim Gregório podia escapulir a tempo.
Manfredo seguia um ritual; todo o domingo, dia do Senhor, após a missa, levava Tigrão para passear. Descobriu com o tempo que Tigrão adorava assistir uma boa partida de futebol, o que Manfredo não sabia é que Gregório era um ótimo jogador, e Tigrão era fã de Gregório. O que também Manfredo nem imaginava, era que toda a cidade tinha conhecimento dos encontros secretos de Iselda e Gregório, e da amizade sincera entre Tigrão e Gregório.
Ao fim da partida de futebol, Tigrão corria ao encontro de Gregório, abanava o rabo, pulava para lamber o rosto do amigo, fazia a maior festa, e os colegas do moço aplaudindo; - “aí Tigrão! ”, e comentavam entre si da incrível amizade entre o cão e um estranho, coisa rara de acontecer, aliás, raríssima...
Todo o caiçara é um sarrista, um galhofeiro como se dizia nos tempos de dantes, assim “tigrão” passou a significar “corno manso” no linguajar popular. Só quem conhece de perto o povão é que sabe o significado secreto de muitas palavras, e Manfredo era elite, ele desconhecia os tais falares caiçaras, e adorava quando alguém da plebe vil o chamava de Seu Manfredo, o tigrão.... Enfim, coisas nossas.
Gastão Ferreira/2019