Nhá Tonica
Se algo apavorava nhá Tonica, era a morte; durante seus cento e tantos anos ela conseguiu escapar lépida e fagueira... Também! Teve muito tempo para aprender dezenas de rezas e feitiços para afastar a tinhosa. Várias vezes enfrentou a dita cuja, cara a cara; a bruxa com a maçã envenenada da sua infância, a mulher com a foice, o esqueleto andante, foram algumas das formas com as quais a madame morte tentou levá-la; nunca conseguiu!
Nhá Tonica completara cento e cinco anos; é verdade que a saúde já não é mais aquela maravilha. Andava rengueando, nervo ciático marcando presença dia sim, dia não. Coluna male e male, coração dando umas rateadas, mas, enfim estava vivinha da silva e provavelmente chegaria aos cento e vinte dando risadas, e por falar em risadas, acabara de trocar ambas as dentaduras pela decima vez... Ah, essa dor no peito! Opa, tem alguém batendo palmas no portão.
Era uma menininha de tranças, estava oferecendo votos para a mais bela estudante do básico; - “Nossa! Ainda vendem votos para a mais bela estudante? Que coisa ultrapassada... Eu, hem!”
- “Garanto que quando a senhora tinha a minha idade, também saiu por aí, vendendo votos...”
- “Acertou! Mas quem sempre ganhava era a filha do prefeito, aquela lambisgoia metida à besta; não era bela e nem estudante...”
- “Como assim! Não era estudante? Se vendia votos, era estudante, sim...”
- “É verdade! Aparecia duas vezes por mês na escola, vivia viajando com o papai prefeito e a mamãe, pelo mundo... Ah, estes nossos políticos! Tem coisa que não muda nunca...”
- “Estou chocada!”
- “A guria com nove anos conhecia metade do mundo, seu pai adorava o Chile...”
- “Mas o Chile é logo ali…”
- “O Chile foi só o começo, depois veio o restante do planeta; nesse tempo nossa cidade exportava arroz para o mundo, e o nosso alcaide achava que o mundo era a casa dele....”
- “A história está boa, mas a senhora vai ou não vai comprar alguns votos?”
- “Não posso, minha filha! Sou aposentada com o salário mínimo, gasto metade dele com remédios, tem a água, a luz, a comida... Se você aceitar, posso lhe oferecer uma limonada e uma broa de fubá, ficarei muito feliz...”
- “Claro que aceito, adoro broa!”
- “Então entre, querida...”
Após a menina entrar na casa, nhá Tonica sentiu um vento frio, um arrepio; reparou melhor na menina e ela estava de cabelos soltos; - “Menina! Você não estava de tranças?”
- “Estava, mas não estou mais...”
- “Tem algo estranho acontecendo! A voz, a roupa, o olhar... Quem é você? O que você quer comigo? Diga!”
- “Antônia! Você não está me reconhecendo?
- “Nunca te vi mais gorda!”
- “Sou Sonia Regina, a sua melhor amiga de infância...”
- “Meu Bom Jesus! Soninha morreu há mais de cem anos; cruz credo, mangalô três vezes...”
- “Calma! Calma! O que tinha de acontecer já aconteceu...”
- “Como assim! Já aconteceu?”
- “Você acabou de morrer...”
- “Meu Deus, eu morri! Não! Não! Não!”
- “Se assunte mulher! Porque toda essa gritaria? Se olhe ali naquele espelho...”
- “Nossa! Eu sou de novo uma garotinha, morrer é isso?”
- “Sim! Morrer é voltar para casa; o corpo fica e a alma vai embora. O corpo envelhece, a alma é sempre jovem; olhe para o portão do jardim...”
- “Aquela velha caída frente ao portão é eu...”
- “Sim, ataque cardíaco fulminante; você morreu antes de chegar ao portão e eu vim te buscar, simples assim...”
- “Estou espantada! Tanto medo e por nada...”
- “Simbora...”