O rio do esquecimento
Brota singelo, fraquinho e vai tomando corpo enquanto cresce e se avoluma, depois se expande e se fortifica conforme avança pelos caminhos do mundo, até se tornar imenso e majestoso, e no final se junta ao mar do esquecimento para sempre; é assim que surge um rio, é assim que a vida floresce, é assim que compartilhamos da existência.
Quando Gildeth nasceu, sua tia Antonniella, dona das afamadas lojas “Tonni & Ella”, fez uma homenagem à bebê sobrinha, criou uma roupa especial para neném e deu o nome de Gigi, a pequena anta feliz, ao produto; foi o maior sucesso comercial, e tornou o rosto da criança muito conhecido, pois na propaganda aparecia Gildeth abraçada a um filhote de anta.
Desde a pré-escola quando Gildeth estreou socialmente, sua presença fez parte da comunidade; não tanto pela própria figura, mas pelas raízes familiares e o fascínio que a riqueza e o poder exercem nos menos favorecidos pela deusa Fortuna.
Pode-se afirmar que Gildeth teve sempre do bom e do melhor, foi o mais lindo bebê da cidade por cinco anos consecutivos; vale a pena lembrar que naquela época os títulos eram comprados, e que titia Antonniella fazia questão de arrematar todos os talões de venda de votos ao mais lindo neném, e demais eventos beneficentes que oferecessem algum título honorífico.
Gigi também foi eleita a mais bela estudante, miss comércio, miss simpatia, rainha do verão, rainha do inverno, rainha do outono e também rainha da primavera. Da sua lista de conquistas faziam parte os títulos de rainha da festa do robalo, da festa do parati, da festa da tainha de cinco bairros rurais, sem esquecer a festa do camarão, do porco no tolete, e sim, foi rainha de muitos rodeios e princesa da festa da cajá-manga, e do festival da banana e do maracujá. Sua tia Antonniella gastou fortunas com sua amada sobrinha...
Com tanto dinheiro, Gildeth não precisou de diplomas e de ter uma profissão definida; desde a mais tenra idade marcada pela figura de Gigi, a antinha feliz, Gildeth estava mais para encantada do que para um ser de pés no chão, mas o rio da vida corria veloz...
A loja de tia Antonniella faliu, o dinheiro da família acabou, e Gigi que nunca teve uma profissão, pois não sabia fazer nada, a não ser miss, rainha, princesa, títulos que não enchiam a barriga de ninguém, sentiu as aflições da pobreza; mulher de curta inteligência, cheia de caras e bocas, comeu o pão que o diabo amassou, envelheceu sozinha e seu nome foi apagado dos corações e mentes, e tudo foi para o esquecimento...
Assim é a passagem da maioria das pessoas pelo milagre existir; nascemos de um olho d’água na fonte da vida, e nos transformamos em regato, riacho, ribeirão, rio. Alguns são rios de águas límpidas e cristalinas, outros de águas negras, perigosas, profundas e revoltas. Alguns enfeitando a paisagem, outros a modificando ou destruindo, alguns trazendo vida, progresso, outros trazendo morte e devastação.
O rio da vida corre para o mar do esquecimento; um dia todos seremos iguais nesse silêncio de eternidade, talvez nossos bisnetos sejam os últimos à lembrarem de nossos nomes. Talvez os antigos retratos falem de nós, e o que são retratos senão a captura de momentos felizes! Então a vida que vale a pena viver, é apenas isso; a soma dos momentos felizes, dos risos, dos abraços, dos olhares de compaixão e conforto, e nada mais...
Gastão Ferreira/2019